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Reivindicar uma língua minoritária
Reivindicar uma língua minoritária
Os Burghers portugueses do Sri Lanca

«Num país altamente multicultural e multilingue, não surpreende que os Burghers portugueses se configurem também como uma nação sem estado, manifestando a sua identidade através de artefactos materiais e imateriais que ora se difundem para além das fronteiras da comunidade ora permanecem aí circunscritos.»

 

A Ásia Meridional constitui-se como uma das áreas social e linguisticamente mais diversas do planeta, dispondo de um número considerável de línguas de diferentes genealogias – de acordo com algumas estimativas, esta região albergará cerca de 11% das línguas do mundo. O Sri Lanka (ex-Ceilão), país insular situado a sul da Índia, dispõe de similar riqueza étnica e linguística, incluindo, pelo menos, oito línguas, de estatuto, genealogia e vitalidade variáveis.

O Crioulo português do Sri Lanka é justamente uma dessas línguas. Trata-se da língua materna e o meio de comunicação natural e de coesão cultural dos Burghers portugueses, uma comunidade de euroasiáticos de origem portuguesa que tem procurado manter a sua especificidade identitária e que se vê mais ou menos pressionada a incorporar traços e práticas culturais e linguísticas dos grupos maioritários com os quais coexiste em desequilíbrio numérico, social e económico de há séculos a esta parte.

Num país altamente multicultural e multilingue, não surpreende que os Burghers portugueses se configurem também como uma nação sem estado, manifestando a sua identidade através de artefactos materiais e imateriais que ora se difundem para além das fronteiras da comunidade ora permanecem aí circunscritos.

A língua que parte da comunidade ainda preserva nas interações quotidianas e em alguns domínios e expressões de caráter social praticadas contemporaneamente é um desses artefactos. A sua manutenção em práticas sociais transmitidas ao longo de gerações atesta a sua vitalidade enquanto vetor identitário e unificador que não aliena, mas que agrega membros da comunidade, independentemente dos seus níveis de proficiência. Constitui-se hoje, no entanto, uma língua ameaçada, falada por um contingente cada vez menor de pessoas.

Apesar disto, o seu desaparecimento não é uma fatalidade inescapável. Muitos são ainda os membros da comunidade que procuram ativamente desacelerar ou reverter os efeitos da ameaça linguística, escolhendo falar, transmitir e preservar esta língua. Veja-se o caso de Derrick Keil que, na sequência da sua participação no The Voice Sri Lanka, lançou recentemente a sua primeira música, um remake de uma das canções mais populares do cancioneiro dos Burghers portugueses.

Celebremos, então, todos os Burghers portugueses e demais falantes de línguas minoritárias e/ou ameaçadas que em todo o mundo continuam a reclamar para as suas línguas o espaço que é seu por direito, ignorando todas as pressões, mais ou menos deliberadas, para a assimilação. Celebremos todos aqueles que insistem em continuar a usar as suas línguas maternas em todas as funções sociais, públicas e privadas, intra- e extracomunitárias, e que o fazem perspetivando a sua preservação, transmissão e projeção futuras. Celebremos, neste Dia Internacional da Língua Materna, a diversidade linguística global.

 

N. E. – Ler também "Direito à língua materna" (21/02/2022), da mesma autora.

Fonte

Artigo publicado no dia 21 de fevereiro de 2023 no suplemento P3 do jornal Público.

Sobre a autora

Linguista, é investigadora no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL) e as suas áreas de estudo são a sociolinguística, o crioulo português do Sri Lanka e crioulos de base lexical portuguesa.