Curiosamente, apesar de Goa ser quase toda ela, do norte ao sul, uma faixa litoral banhada pelo Oceano Índico, e apesar do calor húmido que faz suar durante a maior parte do ano, a praia não tem tido tradicionalmente uma grande atracção para os Goeses para mitigar os seus verões. Existe uma explicação para isso: A região litoral era habitada pelos pescadores, e o solo arenoso que não presta para o cultivo de arroz, mas é bom para os palmeirais, é também habitado por outras castas não-brâmanes.
O conceito de mar e praia como uma zona onde é difícil controlar os contactos sociais, deu origem à teoria hindu de «kalapani» (=água escura, para significar o oceano) como poluente de casta. Não é de admirar por isso que os estrangeiros (incluindo os portugueses) que chegassem pelo mar eram considerados impuros, e o termo «firangi» aplicado aos europeus tinha uma conotação social negativa. Deve ter sido também a razão para os brâmanes de Goa serem considerados inferiores aos brâmanes do interior da Índia, e para não poderem funcionar como «botos» (bhat) ou ministros de sacramentos hindus. Todos os «botos» nos templos hindus de Goa são importados das regiões vizinhas do interior.
Esta questão de locais associados com castas não se limita às praias. As zonas mais férteis e úteis para o cultivo de arroz em Goa estão situadas nos cursos superiores dos rios que serpenteiam o interior do território antes de desaguarem no mar e serem afectados pelas marés. São até certo ponto protegidas contra as águas salgadas do mar por meio de um muito velho sistema de comportas, chamadas manduças, que se fecham automáticamente durante a maré enchente. Não se conhece a data em que se inventou este sistema de diques, mas atribui-se às origens das «comunidades» aldeianas de Goa e que remontam a tempos muito remotos. É curioso observar as aldeias que distam uns 10 quilómetros da praia serem tradicionalmente administradas quase exclusivamente pelos brâmanes.
Mesmo nas aldeias controladas pelos brâmanes havia necessidade de serviços prestados por outras castas, incluindo a casta faraz (mahar) dos intocáveis, que dispunham dos animais mortos e curtiam as peles. Faziam parte da estratégia psicológica da defesa rural: Ocupavam a rima fronteiriça da aldeia, e constituiam uma barreira social contra imigrações indesejadas e hostis.
Eram bairros pobres, e existe um adágio em Concani que diz: "Ganv asa thuim marodd asa", isto é, "cada aldeia tem o seu bairro dos farazes, ou intocáveis".
Os hippies nos anos sessenta fizeram de Goa uma paragem obrigatória no seu roteiro oriental que passava por Nepal e por Bali. Droga e nudismo entraram na vida pacata e tradicional do território. Não eram novidades, porque certo grau de nudez sempre fez parte da cultura local, tanto que a documentação histórica missionária e alguma legislação civil revelam uma certa preocupação mórbida com o estilo indumentário dos naturais. E «gudguddi», um tipo de cachimbo oriental, para fumar tabaco e ópio, fazia parte do quotidiano hindu.
O que causou certa ruptura era a introdução de nudez e droga num novo contexto social e político do território, que acabava de ser «libertado» do regime colonial e «integrado» na União Indiana. Era um contexto político-social de contestação: a nova geração queria sentir a diferença, e as classes (e castas) até então desfavorecidas procuravam um melhoramento das suas condições de vida. A chegada dos hippies deu-lhes uma mãozinha. Voltarei a isto numa outra ocasião. Para já gostaria de contar como eu passava os meus verões como criança.
Mãe, onde vamos fazer a nossa «mudança» este ano? Era assim que eu e o meu irmão tentávamos saber da nossa mãe como seriam as nossas férias do verão. Uma das opções, e que mais me excitava, era passar uma temporada com os meus primos na casa ancestral da minha mãe. O mês de Maio era o mês de mangas, e o quintal da família produzia algumas das melhores variedades de mangas goesas, tais como as malcoradas, as afonsas, as fernandinas, e as secretinas.
Vem-me à memória um canto dum poeta indo-português: «Portugal tem belas frutas / No Brasil as há também / Mas como as da nossa Goa / Nenhuma outra terra as tem.» E continua: «Só as mangas valem todas dali, / Se me tendes por suspeito, ouvi: // A rugosa mal-corada / Faz lembrar o carnaval,/ Mal-corada é uma velha / E por dentro angelical. // A manga afonsa fragrante / Tem de ouro a fúlgida cor, / Mas entre o metal e a fruta / A fruta tem mais valor.// etc. etc.
O maior prazer nosso das crianças era colher as mangas directamente das enormes árvores às pedradas. Houve casos em que as nossas pedras voltavam sobre as nossas cabeças! Mas causávamos grande preocupação aos tios por causa dos efeitos desastrosos que as pedras tinham no telhado da casa e só eram conhecidos quando chegavam as monções no mês seguinte.
As nossas férias anteriores já tinham provado isso muito bem, mas o divertimento juvenil e o apetite pelas mangas ultrapassava quaisquer avisos. Reuniamos, todos os primos e a criançada do bairro no corredor das lojas do meu tio após o almoço.
Organizávamos competições de cantos e discursos, que podiam ser em concani, em inglês ou em português. Os premiados ficavam com as melhores mangas que tinhamos conseguir colher.
Nem todos os nossos verões tinham o mesmo destino. A outra alternativa para a mudança do ano era passar um temporada nas termas. Fizemos isso algumas vezes, e as termas mais preferidas da minha família eram da aldeia de Pomburpá.
Alugávamos uma parte duma casa particular. As termas ficavam numa zona montanhosa com uma densa cobertura de arvoredo, e as águas eram consideradas medicinais, e especialmente recomendadas para os que sofressem de tensão ocular.
Foi durante uma dessas temporadas em Pomburpá que o meu pai decidiu ir pescar no rio que passa pela aldeia. Ele levava kôblém, que era uma rede pequenina com arco de pau. Eu levava uma cana com fio e anzol. As margens do rio eram muito lamacentas, e o meu pai não se apercebeu muito bem do perigo disso. Ele tinha muita experiência de pesca e sabia nadar muito bem, mas foi esta uma situação a que ele não estava preparado. A margem do rio estava protegida dos arrozais ao lado por um muro que faz parte do sistema dos diques a que já nos referimos. Mal tinha o meu pai decidido entrar no rio, ele começou a enterrar-se na lama. Foi somente a sua presença de mente que o levou a agarrar-se às raízes das plantas que cresciam na margem. O mínimo movimento dos pés enterrava-o cada vez mais. Eu não me tinha apercebido da gravidade do perigo, e fui obedecendo às instruções que o meu pai me dava, já nesta altura enterrado até à cintura. Seguindo as instruções deitei-me no chão na vertente oposta do muro, e ofereci uma ponta da cana ao meu pai. Agarrando a outra ponta com uma mão e as raízes com a outra, o meu pai arrastou-se aos poucos para fora da lama. Senti que a operação durou uma eternidade, porque eu sentia a força que me arrastava enquanto que eu não largava a cana. Disse-me o meu pai que se ele estava ainda vivo, ele devia isso a mim. Mas pediu-me para não contar nada à minha mãe. Guardei a minha palavra, até que há uns poucos anos o próprio pai falou do incidente. Vi umas lágrimas de gratidão nos seus olhos. Não dissemos mais nada. O meu pai vai completar 85 anos de idade. A minha mãe já morreu, e nunca lhe contei o nosso segredo.
Também nunca voltamos às termas de Pomburpá.