Dues Lhénguas - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Dues Lhénguas
Dues Lhénguas
Um poema em mirandês

Poema em mirandês inserto no livro Cebadeiros (2000), que, com a devida vénia, se transcreve da biografia póstuma do autor [O Fio das Lembranças – Biografia de Amadeu Ferreira (Âncora Editora)], de Teresa Martins Marques, cujas notas de enquadramento que o acompanham ficam igualmente transcritas em baixo, com a respetiva tradução em português.

 

 


Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas buí-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua meio a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que la outra nun conhece
ríen-se ua de la outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sal-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muitas bezes acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a la outra.
Dambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de la outra:
l mirandés naciu purmeiro i you afiç-me a drumir
arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tube scuola para donde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nin sou you sin ambas a dues.

Duas línguas

Tradução em português, feita também por Amadeu Ferreira


Andei anos a fio com a língua torcida por a
obrigar a sair do seu caminho e ter de
pensar antes de dizer as palavras certas:
uma língua nasceu-me comia-a em merendas bebi-a em fontes e ribeiros
outra é despojo de uma guerra de muitas batalhas.
Agora tenho duas línguas comigo
e já não passo sem as duas.
Estou sempre a trocar de língua com algum receio
como se fosse um caso de bigamia.
Uma sabe coisas que a outra não conhece
riem-se uma da outra fazendo troça e por vezes zangam-se
fora isso dão-se tão bem que sonho em ambas ao mesmo tempo.
Há dias em que quero falar uma e sai-me a outra.
Há dias em que fico com uma delas tão amarrotada que se não a falar expludo.
Há dias em que se me entrelaçam uma na outra
e depois começam a correr para ver quem chega primeiro
e muitas vezes acabam por sair enrodilhadas
e eu rio-me.
Há dias em que fico completamente curvado com as palavras por dizer
e trepo por elas como uma escada
e deixo-as voar como música
com receio de que enferrujem as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra
mas as palavras escondem-se-me
e gasto muito tempo à procura delas.
Entre elas dividem o meu mundo
e quando passam a fronteira sentem-se um pouco perdidas
e estão sempre a roubar palavras uma à outra.
Ambas pensam
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta põe o sangue a bolsar das palavras.
Cada uma delas foi professora da outra:
o mirandês nasceu primeiro e eu habituei-me a dormir
embalado pelos seus sons quentes como grossas cordas
e ensinou o português a falar guiando-lhe a voz;
o português nasceu-me na ponta dos dedos
e ensinou o mirandês a escrever porque este nunca teve escola para onde ir.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não passo nem sou eu sem as duas.

  

* poema publicado no livro Cebadeiros (2000), sob o pseudónimo literário Francisco Nebro. Transcrito de O Fio das Lembranças Biografia de Amadeu Ferreira (Âncora Editora), da autoria de Teresa Martins Marques, que anota ainda o seguinte:

 

«O poema «Dues Lhénguas» publicado em Cebadeiros (2000) torna-se uma referência não apenas para o mirandês, mas também para outras línguas minoritárias que com ele se identificam. É o caso dos falantes de guarani no Brasil e no Paraguai, ou o caso do pintor Malangatana, falante de ronga, amigo de Amadeu Ferreira, que lhe disse sentir o mesmo que aquele poema exprime.

(...) Trata-se de um poema de forte expressividade imaginística, particularmente visível nos belíssimos versos em que as línguas são escada e escala, pauta musical que o poeta sobe, degrau a degrau, numa aprendizagem constante, como a vida, escada sem corrimão: "Há dias em que fico completamente curvado com as palavras por dizer/e trepo por elas como uma escada/e deixo-as voar como música." Mostra-nos de forma surpreendente a força espontânea da língua materna e a conquista que representa a língua segunda: "Uma língua nasceu-me comia-a em merendas bebi-a em fontes e ribeiros/outra é despojo de uma guerra de muitas batalhas." O bilinguismo é visto neste poema com uma pitada de humor, já que o poeta, quando quer falar uma, por vezes sai-lhe a outra: "Há dias em que se me entrelaçam uma na outra/e depois começam a correr para ver quem chega primeiro/e muitas vezes acabam por sair enrodilhadas/e eu rio-me." O poema mostra também a complexidade que o bilinguismo implica: “Há dias em que quero traduzir uma para a outra/mas as palavras escondem-se-me /e gasto muito tempo à procura delas."

A língua segunda não é secundária, pois que o poeta a apropriou e a fez também sua como nos revela a imagem da “bigamia”: "Duas línguas que me fizeram/e já não passo nem sou eu sem as duas“.

A língua em que sonhamos faz parte da nossa identidade. Curiosamente, o poeta diz-nos que sonha nas duas, e o mesmo é dizer que ambas o definem e que não pode renegar nenhuma delas, sob pena de se renegar a si mesmo. "Há dias em que fico com uma delas tão amarrotada que se não a falar expludo." Por isso, elas são forçosamente complementares: "Uma sabe coisas que a outra não conhece." E também: "Entre elas dividem o meu mundo/e quando passam a fronteira sentem-se um pouco perdidas/e estão sempre a roubar palavras uma à outra."

Essa complementaridade é dada de forma muito bela mostrando implicitamente as difíceis condições de vida da gente mirandesa, que não teve escola para onde ir: "Cada uma delas foi professora da outra:/o mirandês nasceu primeiro e eu habituei-me a dormir/embalado pelos seus sons quentes como grossas cordas/e ensinou o português a falar guiando-lhe a voz;/o português nasceu-me na ponta dos dedos/e ensinou o mirandês a escrever porque este nunca teve escola para onde ir."

O contraste entre os dedos e o coração funciona como imagem das duas línguas. O português nasceu nos dedos a escrever nos cadernos da escola, mas o mirandês penetra em zonas afectivas íntimas e profundas: "Ambas pensam/mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar/e quando se aproxima da porta põe o sangue a bolsar das palavras." Ou seja, a violência da vida, em carne viva, calvário de sofrimento dos fazedores de milagres que transformam as pedras em pão.»

 

Cf.  Mirandês: uma língua não morre enquanto andar no sentir e no falar + A língua-pai

Sobre o autor

Amadeu Ferreira (1950–2015), advogado e professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto e da Universidade de Lisboa. Foi um dos principais promotores do Mirandês e Presidente da Associação de Língua Mirandesa. Traduziu Os Quatro Evangelhos, Os Lusíadas e vários poemas de Vergílio e Horácio. Mais informações aqui, aqui e aqui.