Desvairadas Edições - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Desvairadas Edições

A expressão "Ide e multiplicai-vos" pode neste momento ter pouca aplicação entre as populações humanas da Europa Ocidental, com as suas pirâmides populacionais invertidas, mas há que convir que noutros domínios os conselhos bíblicos são tomados absolutamente à letra. O caso dos livros escolares é um deles.

Cada singelo manual escolar reproduziu-se, nos últimos anos, em livros de exercícios, cadernos do aluno, fichas de trabalho e, em algumas disciplinas, também existem cassetes vídeo e áudio. Por outro lado, num esforço de se "cientificizarem" disciplinas como a Educação Física que habitualmente não tinham manual, neste momento também fazem questão de se munir do respectivo livro.

Acrescente-se a estes factos a particularidade de os livros escolares se desactualizarem muito rapidamente. Ou seja, apesar de as matérias ministradas em disciplinas como a Química, a Física, a Matemática, a Biologia... serem as mesmas ao longo de vários anos, a verdade é que as edições escolares para os saberes básicos do 8º, 9º, 10º... anos têm de ser permanentemente actualizadas, como se os seus conteúdos dependessem dos últimos avanços da ciência. Na verdade, muitas das novas edições reduzem-se a mudanças de capa, de números de página... enfim de pormenores q.b. para que quem tenha uma versão anterior tenha dificuldade em acompanhar uma aula em que os seus colegas já tenham a última edição. Em resumo, seja por que razão for (e nem todas são as melhores!), todos os anos vários milhares de escudos são despendidos nos agregados familiares portugueses com os livros escolares.

O cheiro dos livros e dos cadernos novos é certamente uma das mais agradáveis recordações de quem passa pela escola. E, como todos aqueles que por lá passaram sabem, muitos destes livros são um instrumento precioso e outros não têm qualquer utilidade e não apenas pela preguiça dos seus proprietários, mas porque pura e simplesmente não fazem falta nenhuma.

Quantos destes livros são efectivamente necessários? Quem não recorda, como aluno ou professor, a tarefa árdua de se tentarem adequar os exercícios indicados nos manuais escolares ao que realmente se dava na aula?

Mas o mais extraordinário e certamente o mais chocante é o facto de a disciplina que deveria apoiar e estimular o amor aos livros se preferir refugiar no comodismo do manual em vez de pôr livros de autor nas mãos dos alunos. Falo naturalmente do Português. Logo de começo, é no mínimo preocupante que, ao passo que as outras disciplinas assumem na capa dos seus manuais orgulhosamente o que são - Química, História, Matemática...- , os livros de Português prefiram camuflar-se nuns títulos de gosto duvidosíssimo, que oscilam entre a exaltação própria de antigos hinos militantes e umas expressões certamente mais calhadas para apresentar iogurtes do que livros.

No interior, o medo ao texto é visível. Raramente se consegue que um texto seja só isso (que já era tudo!). Tem de vir envolto numa panóplia de exercícios, esquemas com espaços em que letra nenhuma consegue caber, muitos quadradinhos para desenhar cruzes... O que deveria ser um complemento, uma opção, um apoio da aula tornou-se no seu centro. Será que o professor se tornou num apresentador dos exercícios do livro e as aulas num acto intermediário entre os alunos e o manual, com o professor a fazer a ligação entre os produtores e os consumidores?

Mais grave ainda, a partir do 9º ano a existência do manual na disciplina de Português não só é muito frequentemente dispensável como, em alguns casos, é mesmo perversa porque distorce a imagem da obra literária. Abra-se um livro de português do 9º ano. "Os Lusíadas" de Camões e o "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente são as obras fundamentais. Mas não são "Os Lusíadas", de que aliás vão precisar nos anos seguintes, nem o "Auto da Barca do Inferno" que os alunos levam para as aulas. Carregam sim com o manual em que "Os Lusíadas" são reduzidos a um triste e sempre falhado "puzzle" de estrofes, esquemas e ilustrações.

Que medo atávico é esse de meter "Os Lusíadas" nas mãos dos alunos do 9º ano? Sendo que não se dá de maneira nenhuma a obra completa, ficaria ao menos o livro, a noção da sua grandeza, tanto mais que "Os Lusíadas" voltam frequentemente a ser referidos nos anos lectivos seguintes. O mesmo se passa com o "Auto da Barca do Inferno", que tal como "Os Lusíadas" tem excelentes edições anotadas, patrocinadas pelo Estado e portanto de preço quase simbólico. Por que razão a lírica medieval, os sonetos de Camões, os sermões do padre António Vieira não hão-de entrar nas aulas em edições que honrem e dignifiquem a obra literária que efectivamente são?

A não ser que o ano não tenha corrido bem ao seu proprietário, um livro escolar não se volta a abrir. O livro escolar é um objecto de consumo. Uma vez terminado o ano lectivo a que se destinava e a não ser que uma campanha de solidariedade com países de expressão portuguesa lhe dê uma nova vida, o seu destino oscila entre o caixote do lixo e o das recordações.

Certamente que o país não desataria a ler "Os Lusíadas" se em vez de os ter conhecido em estrofes espalhadas nos capítulos finais de um livro escolar os tivesse levado na edição integral para a escola. Mas por respeito para com o texto literário, para com os pais que pagam os livros, para com os alunos, muito mais maduros do que a infantilização de muitos dos actuais manuais faz supor, e para com os professores cuja função é efectivamente dar aulas e não reproduzir esquemas, as aulas de Português deviam ser locais onde os livros tivessem entrada sempre que possível.

Fonte

Artigo publicado no jornal «Público» do dia 15 de Setembro de 1999

Sobre a autora

Helena Matos, (1961). Autora da obra Salazar em dois volumes. Começou por ser professora do ensino secundário. Trabalhou em seguida como jornalista. Mais recentemente foi consultora histórica das séries Conta-me Como Foi (RTP) e Depois do Adeus (RTP). Faz comentário no Diário Económico e na Antena 1.