A linguística não é complemento da norma, nem a pode englobar. A linguística é o estudo da língua como ela é e não como se gostaria que fosse. A história, a filosofia, a sociologia da linguagem podem estudar a norma enquanto elemento externo à língua, enquanto ideologia, mas - sob o risco de se anular - os linguistas nunca deveriam colaborar com a sua imposição, em produtos como o Ciberdúvidas.
O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa é um receituário da norma dos gramáticos com todos os vícios da escola do século XIX, faltando as palmatoadas, aliás, substituídas por castigo ainda mais severo, o pelourinho medieval. Ignora todo um século de pesquisa, ignora Saussurre, ignora Chomsky, ignora em Portugal Maria Helena Mira Mateus e tantos outros estudiosos que ultrapassaram perspectivas redutoras como esta.
Nos redutos como o Ciberdúvidas, em que há decénios e decénios se repetem os mesmos exemplos extraídos da literatura anterior ao século XX, não existe fala. As pessoas, de acordo com tal exegese, deveriam falar como os senhores da norma pensam que se deve escrever.
Não é coerente trazer para a liberdade da Internet o passadismo «ex catedra», as «margens». Os autores do Ciberdúvidas, honestamente, não podem pensar que a norma deles é importante para mais alguém, fora de um círculo restrito. A norma, a noção de «correcção», do ponto de vista linguístico, é irrelevante.
A língua que conta é a que se utiliza, com relevo para a que se fala. Compete aos estudiosos saber, e não dizer, como se diz. Podem fazer os decretos que entenderem, com ou sem apoio do poder político. Mas o efeito está à vista: quem sempre acabou por ter mais influência - quem afinal determina os níveis de linguagem - são os falantes. O problema é que, noutros tempos, a única forma de registar a fala era a escrita. Daí, a hegemonia dos literatos.
A invenção do gravador de som, no século XX, acabou com esta hegemonia. Os linguistas podem concentrar-se hoje, antes de mais, na palavra falada, que precedeu a escrita em toda a parte. Sabemos que os sistemas de escrita derivam de sons vocais. E, apesar de tudo o que aproxima escrita e fala, o que as separa é muito mais. Trata-se de sistemas com autonomia e, por isso, merecem análise separada: primeiro o registo verbal, depois o escrito.
O Ciberdúvidas pode ser útil como registo. Como corrector, é irrelevante.