É muito interessante a frase «Lépido, filhote de Valente, um indômito de quatro anos, estava ontem deitado no pasto, sem sela, relinchando, quando foi laçado.», pois não é totalmente pacífica a análise dos termos «deitado no pasto», «sem sela» e «relinchando».
Observemos a frase.
Em princípio, poderíamos considerar que os termos «deitado no pasto», «sem sela» e «relinchando» constituem um predicativo múltiplo. O predicativo do sujeito pode ser simples ou múltiplo. É múltiplo nos casos em que há uma enumeração de termos que completam a significação do verbo e caracterizam o sujeito. No caso, temos a associação de três aspectos caracterizadores de Lépido: «estava deitado no pasto» + «estava sem sela» + «estava relinchando».
Aliás, nesta frase, qualquer dos termos em questão poderia ser suprimido se se mantivesse apenas um dos outros (ou ambos), ou os termos poderiam comutar entre eles (o que advogaria em favor da perspectiva do predicativo múltiplo). Exemplos:
(1) Lépido estava deitado, sem sela.
(2) Lépido estava sem sela, deitado, relinchando.
(3) Lépido estava sem sela.
(4) Lépido estava relinchando, deitado, sem sela.
(5) Lépido estava relinchando e sem sela.
Assim, tendo em conta, como indicado na TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário), que os termos que podem ser coordenados com outros constituintes desempenham a mesma função desses, os termos «deitado», «sem sela» e «relinchando» desempenhariam todos a mesma função, a de predicativo do sujeito (pois não há dúvida de que «deitado no pasto» é predicativo).
Mas, aqui surge a primeira dúvida: o termo «relinchando» é uma forma verbal. Poderá ser considerado um predicativo do sujeito ou terá de ser considerado parte de um complexo verbal («estava relinchando»), como indicado na TLEBS (ou constituinte de uma perifrástica, como classificado na Nomenclatura Gramatical Portuguesa)?
É difícil classificá-lo de predicativo, pois nem na TLEBS nem na NGP formas verbais gerundivas surgem como predicativos do sujeito. Assim, temos de considerar que o verbo principal é «relinchar», estando subentendido o verbo «estar» como auxiliar de «relinchando»: estava relinchando = estava a relinchar. Neste caso o verbo estar já não é um copulativo, mas um auxiliar.
Ora, se um dos termos coordenados afinal não desempenha a mesma função do primeiro, será indiscutível que o segundo a desempenhe? Dito de outro modo, é indiscutível que «sem sela» seja um predicativo do sujeito? A resposta é não.
Expliquemos.
Se a frase fosse apenas «Lépido estava sem sela», não haveria dúvidas de que «sem sela» era o predicativo do sujeito, mas a frase tem outros constituintes, e o que é certo é que o seu autor seleccionou um termo para completar a significação do verbo estar («deitado no pasto»). Ora, completada essa significação, é aceitável considerar «sem sela» como um termo acessório, um modificador de todo o predicado («Como é que ele estava deitado? Sem sela.»), um termo tradicionalmente classificado de complemento circunstancial de modo.
É que, se, sob o ponto de vista didáctico, é legítimo simplificar uma frase ou introduzir-lhe uma alteração para haver uma melhor compreensão, por exemplo, por analogia, não podendo no entanto, essa alteração ferir a estrutura inicial da frase (pois corre-se o risco de provocar também alteração de natureza sintáctica), o que é certo é que na frase real, original, os elementos estão dispostos de uma determinada forma e não de outra naturalmente porque o seu autor assim o decidiu por critérios de natureza semântica e sintáctica, pretendendo certamente dizer (é esta a interpretação que me parece mais consentânea com a ordem dos elementos na frase) que a informação primeira, essencial, que completou a significação do verbo estar, é a de que «Lépido estava deitado no pasto», que se lhe segue uma informação adicional («sem sela»), à qual se acrescenta uma acção realizada pelo sujeito anteriormente caracterizado, a de relinchar.
Espero, com esta minha análise, contribuir para que nos apercebamos de como a língua é rica, de tal modo que permite, por vezes, uma análise plural.