Contributo para uma polémica desencadeada por Vasco Graça Moura sobre o papel dos linguistas na elaboração dos programas de Português
As ciências modernas contam-se entre os mais notáveis triunfos e tesouros culturais da humanidade. Como outros, merecem (...) um tratamento escrupuloso e respeitador. Noam Chomsky
1. "Os linguistas têm ódio à literatura"
Ao ler a entrevista que Vasco Graça Moura deu à "Pública" de 1 de Fevereiro, fiquei a saber, para minha grande surpresa, que "Os responsáveis dos programas de Português são linguistas e os linguistas têm ódio à literatura".
Pretendia certamente o dr. Graça Moura, com declarações factualmente erradas e de tão arrogante deselegância como estas, provocar respostas que alimentassem uma polémica, actividade que o transporta regularmente para as páginas dos jornais. Pois bem, conseguiu o efeito perlocutório pretendido.
Não sei com que linguistas priva o dr. Graça Moura. Eu, pela minha parte, não conheço nenhum que não seja um leitor viciado e voraz. Imagine, dr. Graça Moura, que, nos intervalos dos "esquemas que aprendemos a partir do estruturalismo e de outras teorias, dos diagramas, dos gráficos e toda essa parafernália" VGM: 7, nos entretemos a saborear obras literárias de várias épocas, géneros e culturas, nos atrevemos a conversar sobre elas e temos mesmo a ousadia de nos deleitar com as passagens em que o trabalho sobre a língua faz do texto um objecto de arte! Conceder-me-á, dr. Graça Moura, que estamos especialmente habilitados a compreender esse tipo de trabalho e a apreciá-lo.
Não sei, por isso, em que se fundamenta o dr. Graça Moura quando afirma que os linguistas têm ódio à literatura. O dr. Graça Moura falaria verdade se afirmasse que muitos linguistas, entre os quais me incluo, deploram o modo como a escola põe as nossas crianças e jovens em contacto com os textos literários. A sua exploração não constitui, em geral, um desafio nem para a razão nem para a emoção, quando deveria sê-lo para ambas: ora se esgota em perguntas estereotipadas de resposta trivial, ora fixa a interpretação do texto à de um académico notável, ora exige respostas que consistem em papaguear versões simplistas de conceitos narratológicos. Nada se pede de investimento pessoal do aluno na leitura, nada se propõe que o ajude a desenvolver a sua capacidade de posicionamento face aos textos e de integração dos mesmos no contexto da sua criação ou recepção, nada se faz para nele plantar a semente de um gosto estético que só pode vir a ser, naturalmente, pessoal – de muitas leituras feito.
Os linguistas discordam, isso sim, da posição de que o ensino do português se deve reduzir à leitura de textos literários. Ao contrário do que o dr. Graça Moura afirma, esta discordância não significa que "advoguem uma concepção de língua que dispensa a literatura, o que é um erro de palmatória". VGM: 7. Esta discordância, dr. Graça Moura, não radica tão-pouco em posições de fé, de gosto ou de feitio. Radica no conhecimento dos milhares de páginas publicadas de resultados de investigação desenvolvida nos países do "pelotão da frente", a que queremos pertencer. Contrariamente ao que o senso comum e, por estranho que me pareça, o dr. Graça Moura tem por estabelecido, saber ler um certo tipo de texto não constitui garantia para a leitura bem sucedida de outros. Do mesmo modo, se hábitos de leitura consistentes constituem um factor favorável na aprendizagem da escrita, só se aprende a escrever escrevendo: ora, concordará certamente que o ensino da escrita de vários tipos textuais compete crucialmente à disciplina de Português.
Para não me alongar mais, o que os linguistas defendem, dr. Graça Moura, é que a disciplina de Português deve proporcionar às crianças e jovens do nosso país o desenvolvimento de todas as suas capacidades linguísticas. E se este objectivo não se atinge privando-os do contacto com textos literários, também não se atinge considerando a leitura destes o objectivo exclusivo da disciplina curricular de Português.
O dr. Graça Moura, tal como desconhece a literatura publicada nos países do "pelotão da frente" divulgando investigação no âmbito do ensino da língua materna, assim também ignora (ou esconde) o trabalho que a comunidade dos linguistas portugueses tem vindo a realizar sistematicamente, através da elaboração e orientação de teses, da participação em projectos de investigação nacionais e internacionais, da publicação de obras destinadas a vários tipos de público, do trabalho convergente com especialistas de literatura na formação de professores, visando contribuir para uma melhor descrição e compreensão da língua portuguesa: do modo como se adquire e desenvolve nas crianças, do modo como foi evoluindo ao longo dos tempos, dos produtos dos seus encontros com outras línguas, dos estilos em que se diversifica o seu uso.
2. "Os responsáveis dos programas de Português são linguistas"
Já agora, dr. Graça Moura, reponhamos a verdade dos factos:
Lembro-lhe que os programas de Português do ensino básico actualmente em vigor são os publicados em 1991, pelo Governo presidido pelo prof. Cavaco Silva.
Lembro-lhe que a equipa que os elaborou, e com a qual discuti em privado e em público por diversas vezes, não integrava nenhum linguista.
Lembro-lhe, pedindo-lhe que o transmita ao senhor ministro da Educação, de quem parece ser conselheiro especial para o ensino do português, que foi sobre esses programas que as provas aferidas de 9.º ano foram construídas, e que eram esses os programas ministrados aos alunos que constituíram a amostra nacional do PISA.
Informo-o de que a equipa de autores dos programas do ensino secundário em vigor desde o presente ano lectivo era constituída por três professores de Português do ensino secundário e dois docentes universitários da área das metodologias de ensino de português como língua não materna. Esta é, porventura, uma das razões pelas quais transparece tão claramente nos referidos programas a influência do documento do Conselho da Europa Common European Framework of Reference for Languages: Learning, Teaching, Assessment, publicado em tradução portuguesa pela ASA, em 2001.
Mais o informo de que, em 25 de Janeiro de 2001, os linguistas do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras de Lisboa enviaram ao Departamento do Ensino Secundário um parecer crítico de vinte páginas sobre a primeira versão do programa de 10.º ano do ensino secundário, consultável no endereço www.fl.ul.pt.
Lamentavelmente, no espectáculo encenado pelo dr. Graça Moura, os linguistas e quaisquer outros intelectuais com um pingo de rigor e honestidade científica seriam um erro de "casting". É que o ensino do português é um assunto demasiado sério para um guião elaborado com tanta leviandade, paroquialismo e arrogância.
Artigo publicado na revista "Actual" do semanário "Expresso" de 06-03-2004