Não há língua padrão sem a literatura; o ensino daquela não deve separar-se do desta
Sobre a língua padrão, escrevem Lindley Cintra e Celso Cunha que, "embora seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque actua como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua função coercitiva sobre as outras variedades, com o que se torna uma ponderável força contrária à variação. Numa língua existe, pois, ao lado da força centrífuga da inovação, a força centrípeta da conservação, que, contra-regrando a primeira, garante a superior unidade de um idioma como o português, falado por povos que se distribuem por cinco continentes".
Do artigo da sr.ª dr.ª Inês Duarte que já citei, resulta que a sua pretensa utilização deste conceito envolve uma camuflagem grosseira, um equívoco chocante e um "flatus vocis" confrangedor.
Camuflagem grosseira, porque não há língua padrão sem a literatura e ela propõe exactamente a separação do ensino de uma e de outra. Quando fala em Português padrão usa pois a expressão para vender gato por lebre.
Equívoco chocante, porque, em alternativa, ela avança com um folclórico estendal que só serve para mostrar que, muito antes de dispor do Big Brother, já o ensino de Português tinha a sua Big Sister: "têm de entrar na aula de Português e de nela ocupar espaço relevante actividades de tradução, de adaptação de textos a guiões, de compactação de textos com objectivos e extensões diferentes, com "input" oral e escrito; actividades de compreensão e realização de instruções para utilizar uma nova máquina, um novo "software", um novo produto; actividades de procura de palavras-chave e de classificação de documentos a partir das palavras-chave; actividades orais de fornecimento de informações ao público; actividades orais e escritas acompanhando visitas guiadas; actividades de elaboração de títulos para revistas e jornais; actividades de redacção de "slogans" publicitários, de artigos e "slogans" para campanhas de sensibilização para questões de saúde, de prevenção rodoviária, de protecção do património histórico e natural".
"Flatus vocis" confrangedor, porque é centrífuga, onde devia ser centrípeta, é dispersiva, onde devia ser centrada, e é modernaça, onde devia ser canónica.
Lamentavelmente, a agigantada competência da sr.ª dr.ª Inês Duarte impede-a de compreender que, se aquele indigesto cocktail tiver de entrar na aula de Português, com tanta compactação está bem de ver o que é que dela terá de sair: nem mais nem menos do que a literatura que esta srª drª tão acrisoladamente diz apreciar.
Para a sr.ª dr.ª Inês Duarte, o Português padrão não é efectivamente aquele a que se referem Lindley Cintra e Celso Cunha. É antes aquilo a que, pegando-lhe na palavra e na manipulação do conceito, chamei, e bem, "padrão de inépcia", um subproduto mixuruca como resultado do ensino que propõe.
As noções científicas por que a sr.ª dr.ª Inês Duarte manifesta tanto apego besuntado de sabedoria funcionam elasticamente para ela como uma espécie de funil aberrante: pega na parte larga, quando se trata de expor as suas opadas concepções sobre as aulas de Português; pega na parte estreita, quando se põe a arremeter contra mim.
Mas estas coisas não podem discutir-se dando palmadas na anca. A funda aversão da sr.ª dr.ª Inês Duarte à literatura não se demonstra apenas com este seu ódio à língua padrão de L. Cintra e Celso Cunha: vê-se logo dos termos furibundos que vem utilizando e que tanto o Prof. Higgins como a psicolinguística poderiam situar pitorescamente no antigo mercado da Ribeira.
O que ela defende despeitadamente é o padrão dos... encobrimentos da degradação consecutiva do ensino do Português para que as suas teorias só podem contribuir. Mas faça favor de acalmar o azedume porque não lucra nada com isso.
Remate final de Vasco Graça Moura, in "Actual"/"Expresso", a Inês Duarte, in revista "Actual" do semanário "Expresso", do dia 24-04-2004.