Palavra lexicalizada; expressão sintática lexicalizada; composto morfo-sintático subordinado; composto morfo-sintático (estrutura de reanálise); composto morfológico coordenado – eis tudo aquilo que está a ser ensinado nas escolas portuguesas para substituir o que gramaticalmente era descrito como palavra composta por justaposição.
Este é um exemplo mas existem muitíssimos mais da verborreia e da fúria catalogadora que impregnou o trabalho dos autores da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, vulgo TLEBS. Nesta nova terminologia, que já está ser introduzida nas escolas portuguesas, complica-se até ao infinito o que era simples – por exemplo que benefício resulta do ensino de definições como origem deôntica e alvo deôntico no caso das frases imperativas?
Na análise sintáctica constituem-se categorias misteriosíssimas como o sujeito nulo expletivo e erradicaram-se outras, como os complementos circunstanciais, com argumentos saídos duma qualquer revolução cultural: “na TLEBS não consta a função sintática de complemento circunstancial. Em vez dos “tradicionais” complementos circunstanciais, surgem agora os complementos proposicionais e adverbiais (...), os modificadores preposicionais e adverbiais do grupo verbal (...) e os modificadores adverbiais da frase.” Simples não é? E o que dizer da origem deôntica e alvo deôntico que pretendem explicar as frases imperativas?
Noutros casos multiplicam-se categorias e subcategorias numa espiral ininteligível. Por exemplo, os antigos substantivos, posteriormente passados a nomes entraram agora numa roda viva de nome agentivo, nome de acção, nome de qualidade, nome humano e não humano, animado e não animado, nome contável e nome não contável... definições essas que dificilmente resistirão a uma explicação numa aula real, com alunos reais. O mesmo é válido para duas categorias de adjectivos criadas pelos autores da TLEBS: os adjectivos relacionais e de possibilidade.
Misterioso é o destino do género na TLEBS, ou seja, a divisão entre masculino e feminino. Revolvi o documento da TLEBS e foi preciso chegar ao detalhe dos nomes uniformes para encontrar uma referência ao conceito de género. Mais precisamente os nomes uniformes quanto ao género podem ser: epicenos; sobrecomuns e comuns de dois. Palavras como baleia, águia, criança, vítima, cônjuge, artista, cliente, estudante e jovem ilustram estas categorias. Para melhor ilustração dos leitores acrescento que a águia e a baleia são epicenos quanto ao género. Criança, vítima, cônjuge são sobrecomuns. Quanto aos comuns de dois segundos os autores da TLEBS palavras como artista, cliente, estudante e jovem cumprem os requisitos para se ser comum de dois. Quanto aos outros nomes e adjectivos presumo que não têm género ou que, pelo menos, o dito não responde por essa designação.
Tendo em conta o que sei até agora sobre a TLEBS é natural que registe com agrado o facto de algumas escolas terem encerrado graças à greve dos trabalhadores da função pública. Pior do que uma aula não dada é uma aula onde se ensine isto. Há décadas que os portugueses assistem com um fatalismo inamovível à degradação do ensino em nome da pedagogia, do progresso, do sucesso... Tivemos de tudo e para todos os gostos. A mania dos trabalhos de grupo que todos sabiam ser feitos apenas pelas raparigas do dito grupo; a ideia do ensino lúdico que levou a que desde as contas de dividir até a Platão... No caso do Português de mania em mania fabricaram-se gerações de analfabetos. Adolescentes afogados em livros e jogos didácticos lêem a gaguejar e expressam-se com mais dificuldade do que os seus pais e avós que apenas fizeram a escola primária. Esta espécie de cidadãos semi-analfabetos que concluíram o 9.º ano não sofre de insucesso escolar. Antes pelo contrário estes adolescentes são o resultado do sucesso das sucessivas modas pedagógicas que têm estado subjacentes à concepção dos programas e neste caso particular sobretudo dos programas de Português.
A TLEBS arrisca-se a repetir no início século XXI o mesmo desastroso processo protagonizado pelas “árvores” nos anos 80 e ambos os desastres partem do mesmo erro: o de confundir as aulas dos ensinos básico e secundário de português com um curso abreviado de linguística. Aliás um dos aspectos mais perturbantes de toda a concepção das aulas de Português subjacente à TLEBS é que ela sobrevaloriza a fala, a oralidade em detrimento do texto e da Literatura. Primeiro arreigou-se nos espíritos a convicção de que os alunos não se sentiam estimulados com textos literários antigos. Posteriormente já nem os escritores modernos serviam. Os textos literários foram dando lugar a prosas actuais de jornalistas. Por fim nem esses. Seguiram-se-lhes os regulamentos dos concursos televisivos... Com a TLEBS e este império da linguística os alunos vão acabar a analisar os actos de fala da conferência de imprensa da véspera ou da conversa do autocarro. Contudo ninguém perceberá a conferência de imprensa da véspera se não tiver lido autores como o Padre António Vieira. E qualquer conversa em português ganha outro brilho quando se leu Eça.
Dentro de alguns anos os manuais escolares contendo as definições da TLEBS sobre as máximas conversacionais e os actos locutórios, perlocutórios e ilocutórios farão sorrir quem os abrir. Tal como hoje acontece com os manuais em que frases devidamente escolhidas eram esquartejadas com setinhas e rectângulos de modo a ilustrarem a florestal visão chomskyana da língua. Como sou empedernidamente optimista sou levada a crer que algo impedirá mais este desastre devidamente anunciado. E sem desejar mal a quem quer que seja espero que à TLEBS venha a ser reservado o mesmo destino que aos estudos de João Bonança. Oficialmente João Bonança “notabilizou-se como jornalista, escritor, político e cientista”, tendo até sido candidato à Presidência da República em 1911. Os seus conterrâneos algarvios multiplicam-lhe orgulhosos o nome em placas toponímicas e contudo João Bonança protagoniza um dos casos mais extraordinários do conhecimento ou mais precisamente da presunção dele: tendo dedicado largo tempo da sua vida à redacção duma História da Lusitânia e da Ibéria desde os tempos primitivos ao estabelecimento definitivo do domínio romano, João Bonança não só nunca passou da demarcação das eras da geologia como enveredou por uma peregriníssima concepção da origem da vida na Terra e das suas diferentes fases. Quaisquer factos que contrariassem as suas teses apenas reforçavam o lado fantasioso das suas explicações, e assim de hipótese fantasista em hipótese ainda mais fantasista João Bonança redigiu algumas das mais inúteis páginas da Ciência em Portugal. Confesso que aguardo pelo dia em que os manuais da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário repousem em paz ao lado da História da Lusitânia e da Ibéria desde os tempos primitivos ao estabelecimento definitivo do domínio romano.
Artigo publicado no jornal Público de 11/11/06.