O Dossier (The File) é um livro de Timothy Garton Ash sobre a RDA. Ainda bem que a Editorial Notícias não pôs «dossiê». Eu costumava escrever dossier entre aspas, para assinalar que não é palavra portuguesa (talvez um dia o seja), o que aliás não me tira o sono. Agora, com a sanha aportuguesadora (e não há entrada «aportuguesador») do dicionário atribuído à Academia das Ciências (v. dossier na «Revista»), escrevo assim. E atelier também. Tal como jazz e rock («e rock também podíamos escrever roque», disse Malaca Casteleiro ao Público, 11/5/01). Não me incomodava que esses termos viessem entre aspas, ou «noutro tipo»: «bold», negro, negrito (acepções não registadas no DLPC) ou normando, ou até itálico. Mas não me escandaliza que apareçam na nudez da sua verdade inglesa ou francesa. Por falar em nudez - e o «toplesse»? E «holígane»? E «flache»?
Como dizem os gestores quando vão para cargos políticos, é com sacrifício pessoal e espírito de serviço que escrevo esta crónica. O DLPC é pesado; mesmo no elevador custa carregá-lo. O assunto cansa-me. Mas vejo que a conhecida palavra dossier é hoje um problema, e há jornais que já a usam na forma «aportuguesada» (abrasileirada), «dossiê». Não tarda que me vão proibir de a usar (ou de usá-la). Então uso-a. Tentarei usá-la milhares de vezes, até ser proibida - ou até que, perante a frequência de exemplos e abonações, a futura edição do DLPC a «autorize». A propósito de abrasileirar: sabem o que é «nhoque» no DLPC? «Gnocchi», especialidade da cozinha italiana.
O caso é, pois, grave. Este dicionário, organizado segundo critérios confusos, obscuros e não revelados, cria mais problemas do que aqueles que resolve (genericamente já resolvidos por outros dicionários, aqui e no Brasil). E há ainda as lacunas. Sabem que o robalo (sim, esse honesto peixe, não fascinante mas comestível, em todo o caso com direito a existir) não consta do DLPC? Só acreditei quando (não) vi. Também não queria acreditar que «janízaro» não viesse lá (é impossível folhear qualquer história da Turquia ou do Império Otomano sem encontrar janízaros), nessa forma ou na de «janíçaro». O dicionário da Porto Editora anota ambas. Entre «jangada» e «janota» traz doze entradas. O DLPC traz zero.
Também me disseram que não tinha «fabiano». Não é exacto. Vem lá, e em três acepções, remetendo todas para «Fábio Máximo, o Contemporizador», numa não identificado, noutra considerado «general e estadista romano» e na terceira como «antigo sacerdote romano». É bom o pluralismo, mesmo que não se perceba (v. pág. 1671). Para aumentar a confusão, na segunda Fábio não aparece só como «Contemporizador», mas também como «Temporizador». Dirão que me obstino no «fabiano». Explico. Conheço a palavra desde o curso de Direito, e reencontro-a num artigo de Guilherme d'Oliveira Martins no DN (11/9/00), aludindo ao «socialismo fabiano»: «A essência do pensamento fabiano é a política dos pequenos passos, o gradualismo (...).» Tem pois uso contemporâneo. Mas o DCLP, apesar dos apoios governamentais, ajuda pouco a ler o artigo do antigo ministro da Educação, mesmo com a superabundância de entradas e o ingente número de páginas. Mais uma vez é batido pela 8ª edição da Porto Editora, que menciona a «Fabian Society».
A 25/11/00, escreve o Público em título: «(...) somos como robôs». Não é pois justo dizer que a forma brasileira foi introduzida em Portugal pelo prof. Casteleiro. Mas a palavra «robot», posta em curso pelo escritor checo Karel Capek (falta um sinal gráfico, que este computador não tem, no «c» eslavo), tem uso internacional e também entre nós; quem não gostar escreva autómato. E não é húngara (como notou Jorge Listopad no JL, corrigindo o lapso de M. Casteleiro na entrevista ao Público). Em países primitivos - a França, o Reino Unido, os EUA...-, usa-se robot. Por exemplo no artigo «Rise of Robots», de Hans Moravec (Scientific American, Dezembro de 1999); reparem que não é uma revista checa. Que importância tem isto? É que, tendo perdido o «t», o DLPC ignora «robótica» (e nem escreve «robóica», o que seria incorrecto, mas coerente). Mas conhece «burótica». Também desconhece «roulotte», mas regista «roulement». Coisas. Na entrevista ao JL (16/5/01), o mesmo lexicógrafo diz: «Começámos por estabelecer a nomenclatura, ou seja, a listagem de palavras que íamos fixar.» Julgo que «listagem» é o acto de listar (e não sinónimo de lista), tal como dobragem não é dobra (v. DPLC). O drama é que o DLPC ignora a palavra «listagem», usada pelo seu coordenador (seria boa abonação)! Eu até prefiro «lista», que não é tecnocratês, mas não consigo ver a coerência disto.
Proliferam omissões (v. dossier na «Revista», e artigo do prof. Walter de Medeiros, da Univ. de Coimbra, JL, 27/6/01). Receio que omitir «fractal», «intertextual» e «isotopia», tal como «verismo» e «versilibrismo», desqualifique um dicionário destes. Peço desculpa ao Estado, à Gulbenkian e à Verbo, mas há coisas que têm de ser ditas.
Cf. A importância do jazz na luta por direitos civis nos EUA
Crónica publicada no semanário português “Expresso” (“Cartaz”) em 7 de Julho de 2001. Cf. “dossier” sobre o dicionário da Academia na “Revista” do “Expresso” desta data.