O que ganham Portugal e os demais Estados da CPLP em não terem acompanhado o Brasil na entrada em vigor do Acordo Ortográfico? Artigo publicado no semanário Sol de 3 de Janeiro de 2009.
O novo Acordo Ortográfico já está em vigor no Brasil. Desde o primeiro dia do ano.
Nem Portugal nem qualquer outro dos Estados da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (PALOP e Timor) lhe seguiu o exemplo. É pena!
É certo que o acordo tem moratórias e que Portugal até tem um período de transição de seis anos para implementar as novas regras. E, portanto, quer no caso português, quer nos dos países africanos de língua portuguesa ou no de Timor, não pode falar-se de incumprimento — menos ainda daqueles que nem sequer ratificaram o Acordo.
Mas há que perguntar: ganha-se o quê em retardar o processo?
No Brasil, nos termos do acordo e do decreto regulamentar, também há um período de transição de quatro anos — as novas grafias serão introduzidas nos livros didácticos até 2010 e as velhas deixarão de ser consideradas correctas em 2012. Mas, desde quinta-feira, as novas regras já são válidas.
Portugal devia olhar para o exemplo brasileiro.
Lula da Silva assinou o acordo por ocasião das comemorações dos 500 anos da chegada da real corte portuguesa ao Brasil.
E promulgou o decreto regulamentar no dia em que se assinalou o primeiro centenário da morte de Machado de Assis.
O simbolismo das datas não foi um acaso. Foi pensado. E bem pensado.
O Brasil tem na língua portuguesa um bem precioso, que preserva e defende de forma ímpar. Sem falsos purismos nem complexos. Se Machado de Assis é a referência literária, Pessoa e Camões não lhe ficam atrás.
E a língua portuguesa, não só por isso mas também, tem no Brasil o seu bem mais precioso: mais de 180 milhões de falantes, ou seja, 4/5 dos que se expressam em português no mundo.
A questão do Acordo não pode reduzir-se a um conjunto de querelas entre os defensores do português de Portugal e do português do Brasil. Assim ao género de um jogo de futebol em que a norma brasileira dá uma goleada na norma portuguesa — apenas 0,5% das palavras usadas pelos brasileiros sofrem alterações com este Acordo, e em Portugal são afectadas 1,5%.
Estão cheios de razão os puristas do português europeu quando dizem que o Acordo tem incoerências e critérios díspares nas soluções que preconiza.
Mas a maior incoerência é não ver a sua principal virtude: a sobrevivência do português como uma das línguas mais faladas no mundo.
Para isso, a uniformização é vital — e o Acordo Ortográfico é o instrumento indispensável.
Esse é o seu (máximo) valor.
Sobretudo numa altura em que o inglês cada vez mais se impõe como língua universal e vai colonizando as outras línguas, dos termos mais técnicos aos mais populares.
Não é por acaso que se diz e escreve mais gentlemen’s agreement do que acordo de cavalheiros; que se substitui a auditoria pela due dilligence em voga; que ninguém diz nem escreve correio electrónico em vez de e-mail; que quem entra num stand (e não loja) de automóveis não pergunta se aquele carro está equipado com sacos de ar, mas sim com airbags; que o povo reclama pelo penalty e não por uma grande penalidade; que cada vez mais portugueses têm Internet em casa para consultar os seus sites preferidos e acham ridículo dizer ou escrever rede internacional ou sítio; que fazem compras e pagam contas e até declaram os impostos online e não pela linha; que estão convertidos ao marketing e ao design (peçam ao Vasco Graça Moura que traduza); e por aí fora.
É tudo uma questão de mind set, na linguagem preferida dos yuppies. Ou de ‘kultura’, como preferem os teenagers.
Curiosamente, os portugueses resistem muito mais aos ‘brasileirismos’ do que à importação directa de palavras e expressões estrangeiras (hoje do inglês, no passado do francês).
Um mero exemplo: os portugueses inventaram a espinaca (vela em balão para aproveitar os ventos de popa) e os ingleses importaram-na e chamaram-lhe spinaker; séculos passados, uns e outros chamam-lhe ‘spi’.
Nalguns casos, trata-se de indisfarçável bacoquice ou pura snobeira. Noutros, simplesmente de falta de cultura literária ou vocabular. Mas, na sua esmagadora maioria, é o reflexo dos tempos e, também aqui, da globalização.
Por isso é tão importante o Acordo Ortográfico em vigor e, quanto mais depressa, melhor.
Pouco importa se os brasileiros cedem em pouco mais do que no x da galinha (como disse Vasco Graça Moura) e se faz ou não sentido ficarmos agarrados ao acento do cágado e tirarmos o chapéu ao pêlo.
Mais vale largar mão das consoantes mudas do que emudecer de vez.
A diferença entre línguas mortas e vivas é que estas evoluem e adaptam-se.
Ora, em bom português, a união é que faz a força.
De outro modo, como diriam os brasileiros, já sambámos.
in Sol, de 3/1/08