«Deixem-nos trabalhar»: o desabafo tem um autor bem conhecido, embora ele represente agora um papel diverso daquele que desempenhava quando invectivou as «forças de bloqueio». E suspeita-se que José Sócrates já esteve tentado a repetir a frase célebre, não fosse o copyright comprometedor. Não era previsível, porém, que outros poderes com competências mais exóticas acabassem por recuperá-la. É o caso – imagine-se! – dos linguistas que nos querem impingir à viva força uma tremenda sigla: TLEBS (Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário).
Linguista e co-autora da TLEBS, Maria Helena Mira Mateus não deixa dúvidas a esse respeito num artigo recente (Público, 29-11-2006): «Por favor não falem do que não sabem e deixem-nos trabalhar sobre a actualização da Terminologia, tirar conclusões da experiência em curso e tornar o ensino da gramática menos obsoleto e integrado nos programas actuais que, evidentemente, não sofrerão qualquer alteração."
As novas «forças de bloqueio» seriam os académicos e escritores que, entretanto, se manifestaram vivamente contra a oportunidade, os critérios, a metodologia e também a forma caótica, abusiva e sub-reptícia (envolvendo interesses obscuros em manuais escolares já editados) com que se tem tentado impor a TLEBS como um facto consumado, antes da conclusão dos trabalhos e da sua aprovação oficial.
Não sou linguista nem professor e, nessa medida, dispenso-me de entrar em qualquer tipo de discussão científica sobre a matéria. Mas basta ler os textos da polémica e a argumentação dos dois lados para se perceber com toda a clareza onde está o bom senso e onde ele de todo não existe.
Aquilo que deveria ser absolutamente essencial no ensino do português no básico e secundário – o domínio da língua, o exercício da leitura, da interpretação e da escrita – é massacrado pelos sábios encartados da TLEBS como uma cobaia de ensaios laboratoriais de alcance impenetrável. Os quais, obviamente, só podem afugentar ainda mais as crianças e os jovens da aprendizagem e convívio com uma língua que já se fala e lê tão mal e se escreve cada vez pior. Mas nada disto importa, como é evidente, aos médicos legistas da TLEBS, fechados a sete chaves na sua morgue linguística, dissecando com novas palavras inúteis, incompreensíveis ou absurdas o cadáver esquisito da língua portuguesa.
Como a tanta gente da minha geração – e de outras anteriores e posteriores –, obrigaram-me a dividir as orações d´Os Lusíadas antes de me darem a ler, perceber e desfrutar o que Camões tinha escrito. O resultado disso é conhecido: Os Lusíadas tornou-se, para muitos, um pesadelo que se procurou esquecer rapidamente e a que nunca mais se quis regressar; para outros, foi preciso passarem muitos anos até se encontrar a disponibilidade e o prazer de descobrir com um olhar novo o que os tinha afugentado.
Já então se punha a gramática à frente do convívio com a língua, em vez de a língua servida pela aprendizagem da gramática. Só que, nesse tempo, o reino dos livros e da escrita não tinha sido ainda suplantado pelo império do audiovisual e dos códigos informáticos. Era então mais fácil contornar a aridez de uma gramática sem alma. Hoje, quando a iliteracia nos fustiga por todos os lados, a gramática ameaça tornar-se ainda mais corrosiva e desencorajadora do apelo da leitura e da escrita.
Chega-se à universidade dando erros de português que talvez não déssemos há cinquenta anos quando entrávamos para o liceu. Mas enquanto a língua vai definhando, os novos mandarins da terminologia gramatical candidatam-se à derradeira função que lhes parece estar reservada: a de agentes funerários.
A TLEBS é uma metáfora das trágicas disfuncionalidades do ensino em Portugal. Entre a velha escola autoritária e elitista da ditadura e o vertiginoso experimentalismo pedagógico – é esse, precisamente, o caso da TLEBS – que assaltou a escola democrática e massificada, instalou-se o vazio e o caos. O centralismo burocrático do Ministério da Educação atingiu um ponto insustentável, favorecendo o corporativismo retrógrado dos sindicatos dos professores. Faz-se tarde para encontrar saídas, alternativas, ideias práticas. Como a autonomia e autogestão das escolas, pelas quais se bate Joaquim Azevedo, coordenador do Debate Nacional de Educação. Ou a "monitorização" de cada disciplina do básico e secundário por uma instituição universitária contratada pelo ministério, como propõe António Barreto no Público de domingo passado. São apenas dois exemplos – decerto controversos. Mas, como diz Barreto, «pior do que é actualmente não será!».
Pior do que a TLEBS é impossível. Ter-se atingido tal grau de autismo e arrogância só mostra como o ensino em Portugal pode tornar-se uma fábrica de Frankensteins em potência. E que, para cúmulo, ainda reclamam: «Deixem-nos trabalhar.»
In Diário de Notícias do dia 6 de Dezembro de 2006.