Concordo inteiramente com o consulente, e desde já lhe agradeço a possibilidade que nos deu de poder abrir este debate, assim como a frontalidade com que aborda estas questões. Relembro aqui, de forma que julgo pertinente, as palavras sensatas de uma das personagens do famoso livro do escritor britânico (nascido na África do Sul) J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, «nem mesmo os mais sábios conseguem ver todas as pontas».
Posto isto, gostaria de esclarecer, em primeiro lugar, que eu não disse, ao contrário do que é referido no texto [O pronome quem e o indefinido «seja quem for» III], que o caro consulente «despreza os grandes mestres»; o que eu disse foi que, «pelo que me é dado a entender», o consulente não parece ser «adepto do recurso aos "grandes mestres"», o que se me afigura algo consideravelmente diferente. Se eu quisesse dizer que o consulente «desprezava os grandes mestres», tê-lo-ia dito da mesma forma frontal e aberta com que o consulente tece as suas observações.
Em segundo lugar, é de notar que, em sintonia com as reflexões de Cunha e Cintra já analisadas nas respostas anteriores, Said Ali, por exemplo, na sua Gramática Histórica, pp.109-110, estabelece uma clara distinção entre quem «relativo indefinido [«destituído de antecedente»]» e quem «relativo pròpriamente dito (com antecedente)»; Evanildo Bechara, como aliás também já tive oportunidade de salientar anteriormente, fala igualmente em «relativo indefinido» (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, p.172).
Ora, tais constatações dão conta, do meu ponto de vista, da hibridez do referido pronome, pois, volto a salientá-lo, dificilmente conseguiremos descolá-lo da sua componente relativa, já que, como vimos, ele acaba sempre por ter um antecedente (expresso ou não).
Em terceiro lugar, e para sustentar o raciocínio que acabei de desenvolver, focalizemo-nos, novamente, por exemplo, nos seguintes enunciados:
1. Quem vai ao mar perde o lugar.
2. Quem quer que vai (vá) ao mar perde o lugar. (proposta do consulente).
Reitero:
a) é ou não possível propor a substituição de «quem vai ao mar perde o lugar» por «a pessoa que vai ao mar perde o lugar» (independentemente de haver ou não uma exacta correspondência entre quem e a pessoa que)? Sendo a resposta positiva, será desprovido de sentido afirmar que o pronome quem se refere a um antecedente, ainda que o mesmo tenha sido «apagado», para utilizar a expressão de Bechara?
b) é ou não possível propor a substituição de «Quem quer que vai (vá) ao mar perde o lugar» por «Alguém que vai (vá) ao mar perde o lugar»? Sendo a resposta positiva, será descabido afirmar que «quem quer», tal como «alguém», funciona como antecedente do pronome relativo que?
A Infopédia, por exemplo, apresenta como exemplos de quem como pronome indefinido os seguintes enunciados:
1. «quem mentiu foi castigado»
2. «há sempre quem o ature»
Contudo, mais uma vez, mesmo neste contextos, considero extremamente difícil descolar o pronome quem da sua componente relativa, por assim dizer,visto que será sempre possível propor as seguintes potenciais paráfrases:
1. «Aquele que mentiu foi castigado»
2. «há sempre pessoas que o aturam»
Repito: admito que a fronteira entre quem pronome relativo e quem pronome indefinido é ténue e nem sempre fácil de delinear, como aliás atesta este já nosso longo debate. Deste modo, retomo a ideia do primeiro parágrafo da minha primeira resposta — não vislumbro razões para que a designação relativo indefinido, na linha do que sugerem, por exemplo, os «grandes mestres» Celso Cunha, Lindley Cintra, Said Ali e Evanildo Bechara não continue a ser utilizada, sendo que me parece aquela que melhor espelha o carácter híbrido do pronome quem, resolvendo assim, na minha opinião, o problema com que nos confrontamos.
Cf. O pronome quem e o indefinido «seja quem for» I (Fernando Pestana); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» II (Pedro Mateus); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» III (Fernando Pestana); O pronome quem, indefinido relativo (Virgílio Dias)