«(...) Da perspectiva da linguística, não existe erro na língua, o que existe são fatos linguísticos que devem ser analisados e explicados à luz do conhecimento científico disponível. Já do ponto de vista do ensino de língua portuguesa, que é basicamente o ensino da norma-padrão, existe sim o erro gramatical (...).»
Um dos pontos de maior tensão entre linguistas e gramáticos é a questão do chamado erro de português. A polêmica sobre esse assunto é tão grande que alguns linguistas chegam a taxar a gramática normativa de elitista e opressora, assim como certos gramáticos acusam a linguística de ser uma espécie de vale-tudo em matéria de língua.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Ocorre que um mesmo objeto pode ter interpretações diferentes dependendo do ponto de vista. O da linguística, que é uma ciência e, portanto, não faz juízos de valor e sim juízos de verdade, é científico, logo descritivo: a linguística diz como a língua é, em todas as suas nuances, em todos os registros, em todas as classes sociais, em todas as regiões, em todas as épocas, na fala e na escrita. Já o ponto de vista da gramática é pedagógico, logo prescritivo: a gramática diz como deve ser o uso culto da língua. A primeira analisa, descreve e explica a língua em seus mais variados aspectos, a segunda regulamenta um de seus registros por razões práticas, quais sejam, de normatização do uso em situações formais de comunicação.
Da perspectiva da linguística, não existe erro na língua, o que existe são fatos linguísticos que devem ser analisados e explicados à luz do conhecimento científico disponível. Já do ponto de vista do ensino de língua portuguesa, que é basicamente o ensino da norma-padrão, existe sim o erro gramatical.
Se, numa prova de geografia, o aluno responder que a capital do Pará é João Pessoa, ele estará cometendo um erro. Se, na prova de história, esse aluno responder que o Brasil foi descoberto em 1822, estará cometendo mais um erro. Se, na prova de matemática, ele responder que 2 mais 2 são 5, ele estará cometendo um erro de aritmética. Portanto, se, na prova de português, ele escrever “nós foi”, estará cometendo o famoso erro de português.
Mas, se a linguística analisa a língua em todas as suas dimensões, ela também considera a questão da normatização das línguas de cultura, ou línguas de civilização – aquelas que têm sistematicamente expressão escrita em nível formal –, e seu ensino. Nesse sentido, a norma-padrão, propugnada pela gramática, é uma dentre as muitas normas linguísticas existentes, nem melhor nem pior do que outra qualquer, mas uma norma que exige especial atenção porque é nela que são codificados os discursos de cultura (literários, jurídicos, jornalísticos, filosóficos, científicos, inclusive os dos próprios artigos científicos de linguística).
Assim sendo, em linguística não se fala em erro e sim em adequação ou não do uso ao contexto situacional de comunicação. Nesse sentido, usar norma-padrão numa conversa de botequim é tão inadequado quanto escrever “nós foi” numa prova de português, num documento ou num trabalho acadêmico. Ou seja, em termos sociais, erro é usar num determinado contexto de comunicação uma forma linguística que não é adequada a ele.
Como disse acima, a linguística é a ciência que estuda as línguas; a gramática é a tecnologia que normatiza o uso formal da língua. E toda ciência gera tecnologias. A clínica médica e a cirurgia nada mais são do que tecnologias, isto é, aplicações práticas, da biologia e da pesquisa em medicina. Do mesmo modo, a engenharia e a computação constituem tecnologias da física e da matemática, assim como a navegação espacial é uma aplicação prática da física e da astronomia.
Uma das aplicações práticas de qualquer ciência é o estabelecimento de normas técnicas de uso de suas tecnologias. A engenharia, por exemplo, segue, dentre outras, as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Isso garante, por exemplo, que todos os plugues fabricados no Brasil sejam compatíveis com as tomadas em que serão conectados. Se assim não fosse, teríamos o caos no uso de aparelhos elétrico-eletrônicos.
Em áreas como a engenharia e a medicina, que lidam com vidas, não observar essas normas pode causar danos irreversíveis e levar até a processos judiciais. A comunicação em registro formal também é normatizada – pela gramática normativa – justamente para evitar o caos da ambiguidade e da incompreensão em situações em que a clareza e objetividade são cruciais. Desse ponto de vista, até um erro de comunicação pode ensejar prejuízos e processos judiciais. E, dentre os erros de comunicação, estão obviamente os erros gramaticais.
Em resumo, a linguística é uma ciência, e a gramática, uma tecnologia derivada dela. Cabe à microbiologia, que também é uma ciência, estudar os vírus; já à medicina cabe combater os vírus nocivos e tratar as doenças causadas por eles. Para o microbiologista, os vírus não são nem bons nem maus, são simplesmente fatos da natureza e objetos de estudo. Para o médico, vírus causadores de patologias são um mal a ser combatido com medidas sanitárias e farmacológicas.
Assim, cabe à linguística estudar como as pessoas falam; cabe à gramática normativa e ao ensino de língua ensinar as formas adequadas ao uso culto e combater o uso de formas inadequadas a esse uso. A gramática normativa é o medicamento para o combate à “doença” do mau uso do padrão culto do idioma nos casos em que ele é exigido.
CPLP
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Artigo do mural Língua e Tradição no Facebook em 23 de maio de 2021.