Parece que só os academicamente autorizados podem decidir sobre estas terminologias cabalísticas. Os responsáveis por um dos lugares onde a gramática é mais perdurante, os escritores, não parecem ter habilitações académicas para se pronunciar. Agustina não consta que, ainda que académica, tenha habilitações académicas suficientes. Herberto Helder não deve ter nenhumas. Um semelhante deles emitiu uma frase de que os políticos gostam e vem mais ou menos reproduzida no título do que escrevo.
Só três assuntos me merecem rápida meditação aqui. Um é moral, outro é político, um último é estratégico.
O moral. No meio de tanta página – muito bem escrita – que surgiu de todos os lados, houve algo que me chocou profundamente. Que se tivesse chegado ao ponto de atacar alguém por ser casado com outro alguém. Deixa de ser isento um linguista por ser casado com uma linguista que é responsável de TLEBS? [A TLEBS deixa] de ser o que [é] por numa comissão governamental estar um marido da senhora? Não fará sentido a presunção da inocência até se ver o contrário? Isto é, a capacidade de ajuizar sobre um assunto que envolva uma atribuição de um valor está coarctada pelo facto de haver uma cama comum? Ou dois quartos contíguos? Ou duas camas num quarto só?
Uma professora universitária deve ter uma situação intelectual a que chegou por mérito inteiramente próprio e deve estar, até prova em contrário, cientificamente acima de suspeitas de manobras de influência sobre o seu marido. Não precisará disso para agir. Pode fazê-lo por razões da sua influência cultural, à qual tem direito. O seu marido não pode ser implicado numa cabala pelo facto de a sua mulher estar envolvida num debate científico. Até agora não se sabe como irá agir enquanto o professor que também é. Julguem uma mulher pelo seu saber e pela sua acção; julguem um homem pelo seu saber e pela sua acção. À partida, só porque são casados, não podem estar no mesmo ringue do conhecimento a tomar as suas decisões e estas não podem ser correctas? O casamento não é uma sujeição de alguém a alguém, isso é para as criaturinhas. É o encontro de dois indivíduos que decidem ter uma vida comum, mas podem não decidir pensar da mesma maneira em todos os seus aspectos. Muito pior é o que, bem pesquisado, mostraria muitíssimas situações deste teor: o homem X, pela intriga ou pelo seu poder, nomeia um seu homem de mão Y para um posto que é relevante – depois, exige ao seu homem de mão que cumpra os seus desígnios no lugar em que o colocou. As máfias são feitas assim, não é sabido?
É inadmissível pôr em causa, por este motivo apenas, esta situação. É esta vergonha acusatória que temos quotidianamente de enfrentar dadas as condições sanitárias da moral de um país que ainda está longe de muitas dimensões da civilização.
O político. Mais do que [a] TLEBS ser bem ou mal em si, o que importa é quem tentou implementar isso. Se o Ministério da Educação fosse um lugar credível para os professores, estes, os principais envolvidos em todo o processo, seriam capazes de dialogar e de intervir de modo a que se modificasse muita aresta mais incómoda. Os professores não precisam de interventores culturais a falarem por eles. São gente, na sua maioria, informada, dedicada e habituada ao diálogo transformador. O problema está em que desacreditam de tudo o que possa vir de um ministério que os apoucou, aviltou e desautorizou. Um ministério que elegeu como inimigo a abater, diga o que disser na sua demagogia, aqueles a quem devia servir. Sobre este assunto já o padre António Vieira se pronunciou, como talvez nos ministérios se não saiba.
Quotidianamente, a escola serve ao ministério para abater a autonomia do professor: nos horários em que o rouba, nas avaliações em que o conspurca, nas portarias em que o desumaniza. Perante esta situação de abate sistemático, esta via de desprezo pela vontade contínua de aprendizagem e actualização, mesmo sem ter apoios económicos de lado nenhum, a que o professor geralmente gosta de se dedicar, esta espoliação do tempo para pensar e informar-se e ler e ir ao teatro e ao cinema e às exposições onde o melhor de si pode apreender o melhor de outros, esta transformação do professor de educador e amigo dos seus alunos em criado de servir e em bode expiatório do inevitável insucesso escolar: como há-de alguém querer interessar-se por qualquer proposta que surja de um declarado inimigo assim? [A] TLEBS e outras situações existentes não perderam por causa das opiniões abalizadas que as atacam – e que eu estou longe de discutir aqui, tanto mais que em muitos pontos concordo com essas opiniões. Perderam porque ninguém respeita nem pode respeitar um ministério como este que lhes caiu em sorte.
O estratégico. No domínio dos estudos da língua – o da gramática, o da literatura, por exemplo – só um procedimento não consegue afugentar. Utilizar a total clareza. A gramática, se fosse explicada com simplicidade conceptual, não faria ninguém levantar a sobrancelha ou ir a correr para o primeiro bar. Há linguistas que seguem esta via e se tornam ouvidos e muito apreciados. Todos conhecemos exemplos passados e de agora. O que afugenta as pessoas, sobretudo os alunos, são as muralhas que têm de ultrapassar (muitas vezes cheias de dogmatismo) para chegarem a uma simples definição.
O mesmo se passa com a literatura. Ela não perdeu público senão por causa de muitos que sobre ela escrevem. Quem vai gostar de a ler se obrigam a enfrentar hipóteses sobre hipóteses teoricamente abstrusas antes de chegar a uma frase? Quando lá se chega, já se está tão cansado, que somente se boceja. A culpa do afastamento da literatura veio de dentro dela mesmo, com as rejeições do público e da inteligibilidade iniciadas a partir de finais do século XIX. Logo vieram os que só teorizavam, e pense-se no que foi o ensino da literatura e a crítica literária fora do ensino. Quando me lembro dos energúmenos anos 60, do lixo com que foi atulhado o caminho até chegar a um texto, em nome da exigência supostamente rigorosa do acto de ler, não me admiro nada que hoje em dia poucos acreditem que a escrita, mesmo a que parece complexa, se torna muito fácil desde que directamente enfrentada sem a necessidade de batalhar com muitos especuladores antes de lá chegar.
Não se queixem de que não dão lugar de relevo à literatura quase em sítio nenhum. Não foi isso o que a linguística, a literatura, as humanidades em geral andaram a fomentar?
in Actual do semanário Expresso de 9 de Fevereiro de 2007