Em "A língua muda toda de 50 em 50 anos?", João Carreira Bom (JCB) destempera, em verdadeiro auto-de-fé que não lembraria ao Diabo. Parece que ficou melindrado por uma citação que eu fizera de Vasco Botelho de Amaral, antiga prata da casa e antepassado do Ciberdúvidas.
Referia eu, no primeiro ponto da carta que tanto indispôs JCB, uma consulta do leitor Manuel Álvares, de Berkeley, na qual, entre outras coisas, se afirmava "Não há neste dicionário qualquer entrada black-out (com hífen)". A resposta dada a este consulente por Maria Helena Pecante pareceu-me endossar na sua totalidade o que aquele leitor referira.
Considerar k, y e w letras do alfabeto português é a posição tomada tanto pelo Acordo de 1945 como pelo Acordo de 1994. Como o Ciberdúvidas, repetidamente, vem defendendo posição diversa, deveria expor as suas razões, pois contraria neste particular o ensinamento dos acordos.
De passagem, e a respeito de uma alusão feita por JCB a Rebelo Gonçalves: se é verdade que este último propusera a forma Vashintónia no Vocabulário, é também certo que veio a abandoná-la no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa. Acresce que Vashintónia não tem por onde se lhe pegue, sendo uma espécie de aportuguesamento envergonhado, pois, se por um lado, ao pretender dar feição portuguesa ao topónimo, substitui o W pelo V, preserva, no mesmo lance, um espúrio -sh- medial germânico.
No Ciberdúvidas apodam-se de incorrectas pronúncias perfeitamente legítimas, porque castiças, mas que não são do gosto do consultor em questão. Eu não exemplifiquei, porque julgava que o eventual destinatário (neste caso, calhou ser Carreira Bom), até por dever de ofício, teria conhecimento das opiniões expressas pelo pessoal da casa. Efectivamente, José Neves Henriques, em resposta a um algarvio, afirma que a pronúncia correcta (?) de texto é /tâisto/ e não /têsto/, argumentando que, se assim não fosse, se confundiria com testo. A aceitar este argumento, bem teríamos de eliminar do léxico as palavras homófonas. Em resposta a um outro consulente, desta feita quanto a /pôça/ vs. /póça/, JNH admite já as duas variantes, pois que ambas as pronúncias são correntes em regiões de Portugal. Ora, não terá o consulente algarvio direito a igualdade de tratamento? Ainda o mesmo JNH, agora em resposta à alternativa /Saragôça/ vs. /Saragóça/, afirma em estilo de magister dixit, "Claro (?) que o correcto é /Saragôça/", deixando o consulente senão na escuridão pelo menos na penumbra.
Não nego que seja possível, conveniente até em certos casos (por exemplo, para o ensino a estrangeiros), estabelecer uma pronúncia padrão do português. Mas pronúncia padrão não será o mesmo que única pronúncia correcta. Corrigir uma pronúncia portuguesíssima, ainda que a mesma não seja a dominante na terra dos espâlhos ou aquela que o consultor utiliza, parece-me uma sobranceria injustificável.
O CLP vem prestando um serviço útil como registo das dúvidas dos falantes (falantes, claro, no sentido usado na página de apresentação da SLP, e que não exclui a expressão escrita). Poderia também prestar um bom serviço como lugar de comunicação (sempre em dois sentidos, sob pena de se negar a si mesma, e nela incluindo os consultores do Ciberdúvidas) dos lusofalantes, todos eles, embora com competências diversas, depositários por igual da língua comum. É, aliás, na diversidade que reside a força viva da língua portuguesa, que nunca poderá ser monopólio de uns tantos quantos de cartilha na mão. Ao resolver vir a público (e logo na Internet), o Ciberdúvidas não pode reclamar apenas louvaminhas, a não ser que queira constituir seita esotérica.
Se é certo que a língua toda não muda em 50 anos (ela já teria morrido nesse caso), é igualmente nítida uma certa carga ideológica de carácter imobilista-conservador em alguns dos consultores do Ciberdúvidas, aliada a uma pedagogia de palmatória. O CLP desconhece ou deseja esconder os progressos da ciência no estudo da mudança linguística. E não querendo ponderar as últimas modas linguísticas, poderia ao menos atentar nas lições de um Leite de Vasconcelos ou de um Gonçalves Viana, velhas de quase um século.
Termino com uma nova citação de Botelho de Amaral: "Pela minha parte, não me cansarei de implorar à Filologia o regresso à Vida [...], descer à terra firme onde se fala de outra maneira."