Num site do Ministério da Educação, pode encontrar-se a TLEBS [Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário] aplicada à análise de uma estrofe de Os Lusíadas (II, 12), destinada aos alunos do 9.º ano e qualificada como «corpo linguístico ambíguo». O facto de o ministério ter acolhido o trabalho feito numa escola básica na sua página da rede fala por si.
A estrofe é esta:Aqui os dous companheiros conduzidos / Onde com este engano Baco estava, / Põem em terra os giolhos, e os sentidos / Naquele Deus que o mundo governava. / Os cheiros excelentes, produzidos / Na Pancaia odorífera, queimava / O Tioneu, e assim por derradeiro / O falso Deus adora o verdadeiro.
Depara-se-nos logo o fac-símile de duas páginas do Canto II da edição de 1572, com o terrível azar de não figurar aí a estrofe em questão... São reproduzidas as n.ºs 63 a 68, não se percebe porquê.
A análise tem coisas extraordinárias. Alguns exemplos:
1. Afirma-se que «o nome próprio Deus nos surge em três posições ambíguas. A primeira é naquele Deus que..., "pressupondo a existência de outros, o que o torna comum e lhe retira o carácter de entidade única».
Acontece que o nome Deus surge apenas em duas posições. E se, na terceira, está implícito, não está como nome. Em vez dele está o pronome "o" [verdadeiro].
A expressão «naquele Deus» não o dessingulariza. Não pressupõe, antes exclui a existência de outros. Basta ler. É um mero expediente enfático e métrico.
Não há qualquer ambiguidade. Deus não é contraposto a outros deuses em termos equívocos. Quando muito, ambíguo seria o verbo no imperfeito do indicativo («governava», em vez de «governa»), por razões de rima, e isto é que devia ser explicado...
Diz-se também que a segunda e terceira posições da dita ambiguidade do nome próprio Deus estariam em «falso Deus» e «verdadeiro [Deus]».
Volta a não haver ambiguidade: um é falso e o outro é verdadeiro... Aliás, se ambiguidade houvesse, haveria que explicar, em termos empsonianos, que a incerteza ou sobreposição de sentidos funcionaria como recurso de intensificação do efeito poético e da ironia.
2. Pancaia é o nome de uma ilha utópica no Oceano Índico, imaginada por Evémero de Messina (séc. III a. C.). Havia nela árvores de incenso e outras essências vegetais próprias para rituais religiosos. Daí, «os cheiros excelentes, produzidos na Pancaia odorífera» e queimados por Baco. Mas lemos: «o nome próprio Pancaia assume também valor de nome comum devido à presença do determinante demonstrativo '...aquela', constituindo assim uma perífrase de 'Ilha'».
Isto continua a ser puro dislate. Mas o mais bizarro é que o tal determinante demonstrativo "aquela" com tão mágicas e sofisticadas propriedades, NÃO SE ENCONTRA na estrofe analisada!!! É forjado para fins da análise e isto é verdadeiramente grave... E mais grave ainda é o ministério avalizar esta enormidade!
3. Mas há outras coisas pungentes. Noções reaccionárias como sujeito, predicado, complemento directo, complementos circunstanciais, dão lugar a embrulhadas rebarbativas que, do ponto de vista da aprendizagem dos jovens, não adiantam absolutamente nada.
Basta ver como os complementos «...em terra» e «... os giolhos» são descritos. Para o primeiro, temos: «núcleo de um complemento preposicional em posição pós-verbal, constituindo uma unidade sintáctica que serve de locativo à forma verbal põem» e, para o segundo: «núcleo de um grupo nominal que constitui o complemento directo da expressão predicativa anterior». Por sua vez, «... e os sentidos naquele Deus que...» é explicado como «núcleo de um grupo nominal equivalente ao anterior, regido pela conjunção copulativa e que o transforma em complemento directo da expressão predicativa formada pela forma verbal põem».
4. «... produzidos na Pancaia odorífera...» é apresentado como «núcleo de um complemento preposicional seleccionado pela forma verbal 'produzidos' como argumento indispensável». O que é que um aluno vai compreender quanto ao argumento indispensável? De resto, pôr os joelhos em terra e produzir na Pancaia é assim tão diferente? Na Pancaia já não serve de locativo à forma verbal <iproduzidos< i=""> ?
5. «... os cheiros excelentes» acarretam o odor evanescente de um «núcleo de um grupo nominal com função de complemento directo e um Modificador adjectival, em posição de atributo»...
6. «... com este engano Baco estava...» explica-se como «verbo copulativo aqui a assumir um valor absoluto ao dispensar o nome predicativo do sujeito - predicado de uma unidade de hierarquização também secundária». Como é que os alunos vão entender que, muito simplesmente, aquele «Baco estava» quer dizer «Baco encontrava-se ali»?
7. «... e assim por derradeiro, o falso Deus adora o verdadeiro» dá lugar a esta trapalhada: «Predicado da frase que constitui uma oração coordenada copulativa/conclusiva (ligada à anterior pela locução conjuncional e e o conector de valor conclusivo assim)». Parece que toda a frase é o «predicado da frase»...
E o que será pegar em todos os dicionários e onde, na entrada «assim», vem indicado advérbio, alterá-los para se incluir «conector de valor conclusivo»?
8. «Por derradeiro» implica a seguinte explicação deveras transparente: «complemento preposicional aparentemente modificador do sujeito 'falso Deus' no que constituiria uma oração subordinada causal. Na verdade, no contexto, a expressão indica 'Por fim; finalmente' e reforça o valor conclusivo dos elementos anteriores». Quer dizer: formula-se uma hipótese desnecessária, antes de se dar a informação correcta...
Disto se vê como até os professores se enredam nas suas próprias confusões. Escapa à minha obtusidade como é que miúdos de 14 ou 15 anos, ainda por cima mal preparados, vão perceber tudo isto e muito mais nos 45 minutos que são expressamente indicados para a análise em questão. Não lhes chegará todo um ano lectivo à roda desta oitava camoniana!
Com a TLEBS, descobriu-se a maneira de reduzir o estudo de Os Lusíadas no 9.º ano a uma só estrofe das 1102 do poema. Coitado do Tioneu!
O ódio à Literatura atinge o seu paroxismo nestes modelos de autópsia.
Acuso deste crime o Ministério de Educação.
Artigo publicado no "Diário de Notícias" de 22 de Novembro de 2006.