Publicou o «Expresso» na secção Actual do caderno Cartaz, em 4 de Abril, o artigo «A incerteza em linha», de Fernando Venâncio, em que o vosso colaborador, ao criticar o sítio da Internet «Ciberdúvidas da Língua Portuguesa», teve a amabilidade de me fazer uma referência. Referência muito simpática. Mas feita no âmbito de um conjunto de opiniões que me parecem contraditórias e me levam a pedir a publicação do seguinte:
A «fala do povo», há uns anos ignorada ou tratada com desdém pelos que se consideravam ilustrados, é hoje objecto de estudo dos linguistas e de observação benevolente por quem lê muito, escreve ainda mais e paira acima do erro ortográfico ou sintáctico...Também sofro desse «mal»: não me atreveria a corrigir o «obrigada» do revisor do Alfa, nem dou lições à minha mulher a dias quando ela diz «fáçamos», «vestoria» ou «eu lavo-le já essa roupa». Não entendi ainda porque o não faço: por me deleitar o pitoresco («os pobrezinhos tão engraçados...»)? Por um sentimento de impotência (serão tendências da língua, possivelmente «a regra» dentro de dezenas de anos)? Por pensar que ela não me entenderia?
As coisas começam a não ter tanta graça quando são os professores dos nossos parentes e descendentes a dizer «há-des trazer o teste assinado pelo teu pai» ou a escrever «o aluno, demonstra ter conhecimentos sofecientes» ( garanto que estas não foram inventadas). Então, o «laxismo» perante a «incorrecção», a observação benevolente, a condenação do espartilho da «norma» deixam de ter justificação, e aqui-d'el-rei que os «novos analfabetos» andam a ensinar erros de palmatória aos nossos filhos.
Ambas as atitudes são compreensíveis, assim como são evidentes as forças contrárias - conservadorismo e modernidade - que (des)equilibram a evolução da Língua. Ao afirmar que o que deve imperar não é o uso, Ciberdúvidas opta por um dos lados, não há dúvida. Por que lado opta o nosso crítico é que eu não entendi bem: diz que há «regras claras» e «desvios estilísticos», mas que o Ciberdúvidas demonstra «estreiteza de horizontes» e frustra «qualquer dinamismo» por seguir a norma.
Em que ficamos? Aplica-se ou não, para efeitos didácticos, uma norma? Deve o Ciberdúvidas aceitar a «criatividade» de «fáçamos uma língua moderna», de «tu respondestes muito mal a este consulente»? E se o revisor do Alfa nos fizer uma pergunta sobre «obrigado(a)», respondemos-lhe que continue saborosamente a dizer «obrigada» a uma senhora e «obrigados» a um casal?
Ciberdúvidas destina-se aos que querem ou precisam de tirar dúvidas, aos que querem ou precisam de saber e não têm em casa dicionário ou gramática que os esclareçam. Destina-se aos que, sabendo, querem polemizar, e gostam de o fazer abrindo novas perspectivas sobre velhas questões. Há quem nos leia com fastio e nos arrume no rol das velharias, porque respondemos às mesmas perguntas de há cinquenta anos com as mesmas respostas. Que acha o nosso crítico que façamos? Não respondemos às perguntas dos correspondentes e remetemo-los para a dr.ª Edite Estrela ou para Vasco Botelho do Amaral? (Porque não para Cândido de Figueiredo, que é muito mais antigo e já respondia às mesmas coisas?) Pois se eles já disseram tudo e são mais seguros do que nós!?
É claro que Ciberdúvidas tem ainda muito que aprender. É claro que tem pecado por alguns dos defeitos que lhe aponta. Muito obrigada pelos avisos, decerto inspirados pela vontade de nos ajudar. No entanto, há no seu artigo afirmações inaceitáveis, porque injustas, particularmente as respeitantes a José Neves Henriques. Neves Henriques não tem no seu currículo programas de televisão onde pudesse ter demonstrado sábia telegenia, mas tem atrás de si meio século de docência e estudo, de colaboração com a imprensa, de que poucos poderão vangloriar-se. E as suas respostas no Ciberdúvidas são as preferidas pela maior parte dos consulentes por algum motivo. Finalmente, acha mesmo que a eufonia, a cadência, o ritmo de uma frase não podem ser critérios para lhe avaliar a correcção?