Sobre um simples significante - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Sobre um simples significante


Meados de janeiro. No aeroporto duma capital
- leitores eventuais se quereis saber qual
terei de ser sincero como sempre o sou e não apenas em geral:
o caso que vos conto aconteceu no europeu nepal -
um grupo de pessoas num encontro casual
desses que nem viriam no melhor jornal
de qualquer dos países donde algum de nós seria natural
de certo por alguma circunstância puramente acidental
emprega no decurso da conversa a palavra «natal»
embora a pensem todos na respectiva língua original
E sem saber porquê eu sinto-me subitamente mal
Ainda que me considerem um filólogo profissional
e tenha escrito páginas e páginas sobre qualquer fenómeno fonético banal?
não conheço a palavra. Porventura terá equivalente em Portugal?
Deve dizer-me alguma coisa pois me sinto mal
mas embora disposto a consultar o português fundamental
ia jurar que nem sequer a usa o leitor habitual
de dicionários e glossários e vocabulários do idioma nacional
e o mesmo acontece em qualquer língua ocidental
das quais pelo menos possuo uma noção geral
conseguida aliás por meio de um esforço efectivo e real
E ali naquela sala principal
daquele aeroporto do nepal
enquanto esperam pelo seu transporte habitual
embora o tempo passe o assunto central
da conversa daquele grupo de gente ocasional
continua na mesma a ser o do «natal»
Tratar-se-á de um facto universal?
Alguma festa? Uma tragédia mundial?
Consulto as caras sem obter satisfação cabal
Li por exemplo a bíblia li pessoa e pertenci à igreja ocidental
e tenho de reconhecer que não sei nada do natal
Mas se assim é porque diabo sofro como sofro eu afinal?
Porque me atinge assim palavra tão fatal?
Que passado distante permanece actual?
Como é que uma mera palavra se me torna visceral?
Ninguém daquela gente reunida no nepal
um professor um engenheiro ou um industrial
um técnico uma actriz um intelectual
um revolucionário ou um príncipe real
que ali nas suas línguas falam do natal
aí por quinze de janeiro e num dia invernal
pressentem como sofre este filólogo profissional
Eu tenho atrás de mim uma vida que por sinal
começada no campo e num quintal
junto da pedra e da árvore e do animal
debaixo das estrelas e num meio natural
vida continuada na escola entre o tratado e o manual
me assegurou prestígio internacional
Mas para que me serve tudo isso se naquela capital
entre pessoas que inocentemente falam do natal
eu que conheço as coisas e as palavras de maneira oficial
que como linguista as trato de igual para igual
travo afinal inexorável batalha campal
com tão simples significante como o de «natal»?
E entre línguas diversas num aeroporto do nepal
alguém bem insensível sobre mais do que um sentimental
pois pressente em janeiro que se o foi foi há muito o natal

Fonte
Poemas extraídos da "Obra Poética de Ruy Belo", volumes 1 e 2, Editorial Presença, Lisboa.

Sobre o autor

Ruy Belo (São João da Ribeira, 1933 – Queluz, 1978), doutorado em Direito Canónico pela Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma, foi um poeta Aquele Grande Rio Eufrates – 1961, Boca Bilingue – 1966, Despeço-me da Terra da Alegria – 1978 e ensaísta português. Enquanto profissional, trabalhou como professor no ensino secundário e na Universidade de Madrid, colaborou em revistas, trabalhou para o Ministério da Educação e foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.