A prática é, em qualquer ciência, um elemento importantíssimo, mas insuficiente. A prática implica tacteamento, indecisão: é empirismo. Deve ser completada com a teoria; ou esta deve ser aperfeiçoada com a prática.
Tal é o caso da Gramática e da Língua: a Gramática é a teoria, a Língua é a prática. Uma e outra são inseparáveis.
Se alguém quiser flexionar um verbo, como há-de fazê-lo, desde que não haja estudado Gramática? Se alguém precisar de conhecer um feminino ou um plural irregular, onde encontrá-lo, se não na Gramática? Quais as regras da colocação das palavras? Quais as regras da concordância e da sintaxe dos vocábulos? Como e em que condições se poderão usar as imagens? Quais as regras de construção da frase?
O homem que não sabe Gramática, ou que nunca a estudou convenientemente, encontra-se sempre a braços com dificuldades espantosas, porque lhe faltam as necessárias bases. Apenas sabe e apenas conhece algumas das palavras e expressões que ouve, e que, muitas vezes, ouve mal, facto que o leva a deturpá-las lastimosamente! Se tem necessidade, repentinamente, de empregar uma forma verbal que nunca ouviu, como não conhece as conjugações dos verbos irregulares, logo comete um erro. E o mesmo acontece com os femininos, com os comparativos e superlativos, com os particípios duplos, com os sinónimos, com a grafia das palavras e com a sua pronúncia, com a regência dos verbos, etc.
A Gramática é um mestre, um guia e um conselheiro; quem não a conhece e não sabe aplicá-la, anda às cegas e às apalpadelas na imensa floresta da Língua. Pode acertar, e acerta muitas vezes; mas erra, na maioria esmagadora dos casos.
A antipatia pela Gramática
A antipatia que há, entre nós, pela Gramática provém da maneira defeituosa como ela é, muitas vezes, apresentada, desenvolvida e estudada. Tem-se pretendido ensinar a Língua através da Gramática, quando deveríamos, de preferência, estudar a Gramática sobre a Língua.
Não vale nada decorar definições e regras, sem as compreender e sem as relacionar com o idioma a que as mesmas dizem respeito. Estudar Gramática no vácuo é trabalhar em pura perda. Este constitui o erro, que mais graves males tem ocasionado ao Português.
A animosidade contra a Gramática é ilógica e absurda. Nem se deve desprezar este estudo, nem tão-pouco cair no gramaticismo exagerado, do purista e da recta-pronúncia.
Estes desvios intelectuais são, precisamente, uma consequência do estudo defeituoso da Gramática, mais mecanizado do que inteligente.
Há muitas pessoas, que sabem de cor, de cor e salteado, todas as regras da Gramática, mas que nunca pensaram em aplicá-las. Há quem saiba definir o que é um substantivo, um adjectivo, um advérbio, uma preposição ou uma conjunção, e que, no entanto, não os sabe diferençar na prática!
São estes, e outros de igual jaez, que proclamam rotundamente: "a Gramática é uma inutilidade".
No entanto, a inteligência mais comezinha compreenderá facilmente, se quiser e souber ver as coisas, que, para bem falar e bem escrever, forçoso se torna começar por conhecer os significados das palavras, as suas flexões e, outrossim, a respectiva função de cada uma.
A Língua obedece a leis, mais ou menos maleáveis, mas que é necessário respeitar. É a Gramática quem estuda essas leis, e nos ensina as regras da concordância e da construção. Se cada homem falasse e escrevesse ao acaso da sua vontade, do seu capricho, ou da sua ignorância, ninguém se entenderia. Assim como há leis que regulam a nossa vida familiar, social, profissional, etc., também há leis que disciplinam a linguagem de cada povo, linguagem esta que não é pertença de um indivíduo, mas sim comum a todos.
Aquele que deseje escrever correctamente o Português, deverá consultar, com frequência, a Gramática. Deverá tê-la sempre ao alcance da sua mão, assim como um Dicionário (...).
Utilização de diversas Gramáticas
As Gramáticas vulgares são omissas em muitos casos. Por isso, seria óptimo possuir, pelo menos, três Gramáticas. Haveria, assim, mais probabilidades de encontrarmos resposta para as nossas dúvidas ou interrogações. Quando uma delas nada informasse, ou não nos dissesse o suficiente, talvez a outra nos esclarecesse.
Aliás, nem todas as Gramáticas servem para todos os casos. Quem desejar escrever correctamente, deverá preferir - aos manuais escolares, em geral muito resumidos - as Gramáticas documentadas com trechos e citações dos bons autores. O exemplo esclarece, sempre, o espírito, muito mais do que a definição ou do que a exposição teórica. Quanto mais exemplos tiver uma Gramática, tanto melhor: mais fácil e mais evidente será a compreensão dos problemas. Ver é sempre preferível a supor ou a imaginar. Aliás, há exemplos menos claros, menos expressivos do que outros. Há autores que - talvez por saberem muito - expõem a matéria pior do que alguns menos sabedores. O confronto de duas definições diferentes, de dois critérios diversos, de dois métodos divergentes contribui sempre - quando se trata de um leitor criterioso - para esclarecer qualquer inteligência.
Extracto de "A Arte de Redigir", edição Livraria Editora Figueirinhas, Porto, 1945.