Portanto - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Portanto

Hoje toda a gente diz portanto. Toda a gente é talvez um exagero, uma falta de rigor, mas toda a gente já reparou que muita gente diz portanto, a torto e a direito. Sobretudo gente culta, ou tida como culta, vá-se lá saber em muitos casos por que bulas, mais nas cidades do que no campo – políticos, militares, advogados, médicos, engenheiros, professores, estudantes, jornalistas, escritores, todos dizem portanto, dando a ideia de que se trata de palavra indispensável, ou pelo menos útil à comunicação.

Uma qualquer gramática da Língua Portuguesa ensina que portanto é uma conjunção coordenativa conclusiva, e acrescenta a lista que, noutros tempos, era debitada de cor e salteado ao menor aceno do professor: logo, pois, portanto, por conseguinte e por consequência. Simples, portanto. As coisas só se complicam (complicam é um modo de dizer…) com a crescente frequência da palavra, utilizada a propósito e a despropósito, mais a despropósito, acrescente-se já a bem da verdade, inevitável como um tique, irritante como uma espera na paragem do autocarro.

Porquê pois esta inflação de portantos? Para uns é a força do hábito; para outros é uma questão de moda; há quem diga que se trata de um reflexo da preocupação (inconsciente, é claro) de tirar conclusões antes de desenvolver qualquer raciocínio, com o objectivo inconfessado de convencer o ouvinte; e não falta quem afirme que tudo isto não passa de mais um exemplo das tropelias constante a que a Língua Portuguesa é submetida nos jornais, na rádio, na televisão, no parlamento, nos comícios – em toda a parte, portanto.

Hábito, moda, tique, ou ignorância, a verdade é que o uso do portanto generalizou-se, a cada passo se ouve dizer portanto, a simples conversa de amigos ao telefone o não dispensa. Além disso, esta palavra tão banal surge na abordagem de todos os temas, do futebol à política, da religião à economia, e da literatura às artes plásticas, com uma frequência que impede que passe despercebida.

Acrescenta alguma coisa àquilo que se diz? É claro que não. Facilita a compreensão da mensagem que se pretende transmitir? De modo nenhum. Fornece algum contributo estético à linguagem? Pelo contrário.

Então a que vem, pois, o portanto? Os puristas da língua roem-se todos de raiva quando ouvem a fatídica palavra. Não adiantam coisa nenhuma, contra isto não há cruzadas que valham, pode pensar-se em campanhas, é claro, mas convém saber que as boas intenções não têm nada com eficácia. Quem não deu já consigo encostado a esta muleta da linguagem para mais facilmente se exprimir, quem não teve já de se socorrer deste bordão para melhor aguentar a caminhada diária de comunicar com os outros?

É possível que muitos venham dizer que não, que nunca precisaram de semelhante muleta, era o que faltava. Outros confessarão que, não sabendo porquê, são incapazes de falar, incapazes de começar uma frase, sobretudo em determinadas circunstâncias, sem o inevitável portanto, para eles uma espécie de pausa para respirar, um apoio para descansar, um bordão de caminheiro, se quiserem.

Podia ser diferente, pois podia. Mas não é. Temos portanto de falar com os bordões de que dispomos, hábito, moda, tique ou ignorância, não importa. O que importa é que a gente se entenda. A falar, evidentemente.

Fonte

texto incluído na colectânea "Um Momento de Ternura e Nada Mais", Editorial Notícias, Lisb

Sobre o autor

Afonso Praça (Felgar, 1939 - Lisboa, 2001) foi um jornalista e escritor  português. Começou a atividade jornalística na revista Flama (1961), vindo a profissionalizar-se no Diário de Lisboa. Foi também director de O Jornal da Educação e dos semanários Se7e e O Bisnau. Presidente do Sindicato dos Jornalistas em 1974 e 1975.