Rasgo as árvores até perceber
como foi
antes das vogais
e regresso a casa.
Tenho um rebanho de palavras à minha espera
Conheço-as bem
como o cajado onde me encosto enquanto penso
Cubro os ombros de Sol e
fico-me de longe a olhar o rebanho.
As palavras correm livres pelo pasto
É com as mãos que eu as chamo
e elas vêm submissas
É com as mãos que as afasto
«Vão-se embora palavras»
Magoadas, adormecem depois.
Se uma está acordada
eu ponho-a no meu colo
e fico ali
sentada a embalá-la.
Alguém lavra, ao longe, um campo de palavras
e o arado estremece a cada consoante
E passo assim
a tarde toda a dobar-lhes os fios
cantando
enquanto dobo
Aos dias ímpares
Vem uma feiticeira e rouba-me o rebanho
para fazer rezas e ladainhas
— eu finjo que não vejo.
Por vezes
as palavras aproximam-se demais umas das outras
e o vento chega e
põe reticências nas frases.
E é então que o rebanho estremece.
Eu levanto o cajado
e fico a desenhar lírios e urze brava
e o pasto
é agora o grande sonho que alimenta as palavras.
Uma palavra emigrante
Vem súbita e descalça
desfazer-se em sentidos para me convencer
E eu digo
Vem-me cá, oh palavra!
de que estrada chegaste?
quantas bocas te disseram?
quem te chorou, palavra?
quem te deixou partir, sozinha e frágil?
Ela prende-se a mim
e suga-me no peito as desgastadas fomes
Inclinada
cai depois num fio de leite
Faz-se um parágrafo na tarde enfraquecida
e eu chamo o rebanho
que caminha agora em rima emparelhada
Sigo as passadas bíblicas
com o cordeiro
a baloiçar-se às costas
e é um livro que entra pelo quintal.
O título é a palavra adormecida
As aves que se recolhem ao silêncio da noite
são a pontuação
e os acentos agudo e grave
são os meus dedos com que, agora, abençoo o rebanho.
Um deus vem
e assina com tinta invisível
Eu ponho-me ao postigo
em silêncio
a ouvir o poema.