Para que te serve a língua - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Para que te serve a língua

A língua é um instrumento de prazer. Por vezes doce, por vezes amarga.
Para usar e abusar. Para aceitar e para recusar. Para dizer. Para amar. Para
mentir. Para lutar. Para viver.

A língua pode ser meiga, suave, túrgida, bífida, trabalhadeira. Ou então
brusca, áspera, terrível, iracunda, traiçoeira. Como os sentimentos. À flor da
pele.

A língua é quente quando transformada em verso pelos amantes, e fria
quando feita expressão burocrática da lei. O bem e o mal. O branco e o preto e
o mulato, a gente de todos os lugares onde quem fala se entende na voz dos
avós.

A língua é a pátria, a única pátria possível da gente de parte incerta. Aldeia
e bairro e pátria de emoções, de sentidos, das palavras que fazem a fala que dá
cor à língua. Pátria nossa, de Drummond e Rosalía, de Ruy Belo e Lara Filho, de
Cabral e de Mondlane. Língua pátria, língua prática.

É a língua que nos une, mas é a palavra que nos ata. Em Lisboa e em
Luanda. Em Dilí e em Maputo. Em Finisterra e nas ilhas de São Tomé. A nossa
língua é sempre a mesma, sendo sempre outra. Língua, lugar, sabor, saber.
Língua com cheiro a rosmaninho. Língua que sabe a tamarindo. Língua molhada
da chuva e do mar.

A língua tem dentro a música que lhe pertence. Gaitas do Ferrol e bombos
de Lavacolhos. Tambores tribais e cuícas solitárias. Danças de roda e mornas
dolentes. Chulas e viras, sambas e forrós. E vozes. E outra vez palavras. De
Zeca e de Cesária, de Fausto e de Chico, de Uxía e de Bethânia.

Palavras bem ditas, palavras benditas, palavras malditas. Palavras simples,
como pão, enxada, labor, falar. Palavras proibidas, como o medo. Palavras
imaginadas, como a liberdade. Palavras inventadas, como nos sonhos. Palavras
duras, como mágoa, exílio, morte, adeus.

Outras palavras. Palavras que ficam por dizer. Palavras como lágrimas,
palavras loucas. Orelhas moucas, palavras ocas. Bocas. Segredos sussurrados,
desejos confessados. Degredos e paixões. Cartas de amor ridículas, como
manda o poeta. Boca a boca. E a língua, lá dentro, a querer dizer mais, a querer
dizer tudo.

Palavra puxa palavra. Palavrório. Palavrada. Palavrão. Chiça, porra,
bardamerda, gaita. Em poucas palavras. Palavra de honra. Palavra mágica.
Abracadabra. E a voz, cheia de palavras, porque as palavras são a parte interior
da voz que as formata.

A língua é a alma das palavras que a voz revela. Palavras avarentas,
línguas sedentas, vozes atentas. Tenho a palavra, mas não tenho palavras.

A língua é a palavra-chave. Língua materna. Língua de fogo, língua de
areia. Língua de trapos, linguado, lingueirão, linguiça. Lingueta, linguarudo,
língua de palmo. A linguagem linguopalatal do linguista será verdadeiro
linguajar? Não me puxem pela língua.

Fonte
Texto escrito para o Encontro Galego no Mundo "Latim em Pó" - Santiago de Compostela, Dezembro/2000.

Sobre o autor

Viriato Teles (Ílhavo, 1958) é um jornalista e escritor português. Trabalhou nos jornais O Diário ou O Jornal, bem como na revista Visão. Colaborou ainda na RTP e na SIC, na Antena 1 e na TSF. Da sua autoria, constam: Margem para Dúvidas (1998), Bocas de Cena (2003) e A Utopia segundo Che Guevara (2005).