Muito antes, mas mesmo muito antes de eu falar, de eu ser, de eu existir sequer no pensamento de alguém, antes de esse alguém ser alguém, no tempo infinito, no tempo dos tempos de todos os limbos outros homens pensaram, outros homens falaram. Eu sei.
Nas tardes muito quentes do mês de Agosto, quando tudo pára e a vida não tem fim embalada na moleza das sombras, quando a cabeça dormente pende com ternura no ombro duma árvore, nada mais há a fazer que não seja pensar. Assim, imaginai!, eu que já sou muitíssimo velha, que já deixei de ter idade para contar os anos que passam, que já vivi Verãos e Invernos antiquíssimos, que cheguei a viver numa época que não era época, em que nada existia à superficie da Terra, nem mesmo esses homens longínquos peludos e animalescos que, segundo eu aprendi, viviam numas grutas e se assemelhavam a grandes macacos, nem esses homens eu vi, nunca conheci ninguém vivo, um animalzinho mesmo pequeno, uma simples pegada, nada! A Terra no tempo de ninguém, numa das minhas vidas era só realmente uma terra, um imenso grão de terra, tão imenso que encobria a Lua e o Sol e nada mais era visível além duma atmosfera estranha, cinzenta e húmida, da sensação dum ar pesado e sonolento embora respirável e de eu própria, que sem saber porque sim nem porque não me encontrava ali sozinha sentindo o tempo a passar.
Nessa altura eu devia ser muito jovem, quase criança, porque hoje depois de tantos milhares, milhões de anos passados, lembro-me com dificuldade de certas coisas. Tenho reminiscências vagas. No entanto, há sítios, locais, situações que, sem eu ter consciência disso, me despertam lembranças nítidas.
Um dia, muito mais tarde, já eu era adulta, vi uma pessoa igual a mim. Se não era eu própria era um ser exactamente como eu. E à volta desse ser muitas coisas apareceram: o verde do chão, os tons azuis do céu, a água, a chama, a luz, os mares, os rios, a vida, objectos úteis, objectos inúteis, as alegrias, as desgraças, as casas, as cidades e pessoas, muitas pessoas e tudo, tudo o que hoje em dia compõe e agita o planeta.
Foi bastante difícil este meu crescimento, atravessei épocas diferentes, hábitos estranhíssimos, maneiras de falar esquisitas que eu não percebia, foi cansativo crescer, adaptar-me a questões incompreensíveis como o nascimento e a morte e sobretudo aprender a falar.
Enfim, dado que está provado que todos os homens e mulheres nasceram de mim, dado que está provado que sou a única responsável pelo nascimento, evolução e decadência desta Terra, vejam pois, meus distantes amigos, o peso que tenho suportado ao longo da minha interminável existência.
Hoje em dia estou cansada. Vivo nesta cidade rodeada de luzes artificiais e de botões que me facilitam a vida, de pequenos e grandes utensílios desinteressantes imaginados exclusivamente para meu proveito e uma vez que fui eu que tudo inventei, aborreço-me. Aborreço-me imenso. Cheguei a um ponto em que não desejo criar mais nada, desejo que tudo corra e se desenvolva à minha volta como se eu ainda fosse jovem, há milhões de anos. Um dos meus grandes prazeres, se querem saber, é modesto: apenas dormir!
Cheguei à conclusão que, no fundo, muito pouca coisa tem realmente importância, tudo passa, nada se passa, tudo acontece, tudo se desvanece mais cedo ou mais tarde. Eu quero é dormir tranquilamente. As palavras apoquentam-me. No tempo em que estou agora optei por viver no país Portugal e aprendi a falar português. Deu-me muito trabalho, comecei por articular as palavras com dificuldade, no princípio da aprendizagem dizia coisas engraçadas, às vezes imperceptíveis, mas fui treinando, fui ouvindo outras pessoas falar até que consegui falar bem e perceber perfeitamente tudo o que me diziam.
Hoje, deve ser por eu já ser muito velha, por ouvir mal, não percebo outra vez quase nada do que dizem. Foram introduzidos palavras novas, vocábulos extravagantes, sons de outras línguas, os meus filhos que são todos vós não se entendem comigo pois usam termos diferentes.
Tudo isto é complicado mas não tem importância nenhuma, nada tem grande importância, até mesmo a Internet que daqui a um escasso milhar de anos será apenas uma referência engraçada, curiosa, um pequeno apontamento útil ou inútil em determinada época da História da Humanidade.
Vou dormir. Deixar que outros tantos milhões de anos passem por cima de mim.
Veremos o que acontece.
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