O valor das palavras - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O valor das palavras

Forjam-se neologismos todos os dias, e o pior é que nem sempre se podem gabar de felizes as novas criações. Topa-se agora com frequência nos noticiários do jornalismo o desgracioso verbo solucionar. Escreve um localista numa folha séria, sisuda, circunspecta e grave: "No propósito de solucionar simultaneamente a questão em todos os seus prismas, parece conveniente que o Congresso autorize o Governo a confiar o estudo deste assunto a um jurisconsulto de reconhecida competência. (Jornal do Comércio de 4-V-1914).

Esquecendo-se de que existe o verbo resolver, e não percebendo que entre solução e resolver há parentesco de forma (são palavras de uma mesma família), os noticiaristas inventam solucionar que não vale mais nem diz mais do que a velha palavra.

Se vamos neste caminho ou descaminho de criar palavras novas, desprezando, por pura preguiça, para não nos darmos ao trabalho de a buscar, a palavra própria, ordinária, e já existente; se por espírito tolo de novidade, e não por precisão, adoptamos como bom o modelo de solucionar, dentro em pouco veremos os substantivos produzirem uma porção de verbos não menos inúteis e não menos extraordinários. Segundo o tipo do inestético solucionar teremos invenções como estas: pretensionar, subscricionar, comocionar, desilusionar, traicionar, proteccionar, conversacionar, contusionar, mobilizar... Uma orgia de termos novos.

Se se quer alargar o vocabulário de que se dispõe, mais vale aviventar e rejuvenescer uma velha palavra do que fabricar uma nova; antes revocar à vida um arcaismo (1) do que recorrer ao neologismo; mas num e noutro processo é mister discrição e prudência. Deixemos a outros mais autorizados do que nós o cuidado de enriquecerem a língua.

Admitamos as palavras novas que forem necessárias; mas condenemos os inventores de palavras inúteis. Não basta que os neologismos não sejam contrários à analogia: podem ser inatacáveis no ponto de vista da gramática, não pecar, pelo lado morfológico, e, não obstante, são de rejeitar por supérfluos totalmente.

Lícito e aceitável é o neologismo, se nele concorrem duas condições, a saber: necessidade real e, em segundo lugar, que esteja regularmente formado de acordo com o gênio da língua.

Alguns autores fazem uma distinção: chamam neologia à introdução das palavras necessárias, e neologismos às inovações não justificadas. Neologias serão, pois, os termos científicos chamados a baptizar descobertas e invenções. Na lista das neologias deste gênero -- lista que encheria páginas inteiras -- devem-se catalogar termos que são definitivamente portugueses, desde electricidade e seus derivados, desde fonógrafo, telefone e cinematógrafo, até automóvel, aviação, aviador e aeroplano, à espera de outras ideias novas, e invento e descobrimentos e, por conseguinte, de outras palavras novas ou neologias.

Quanto aos outros neologismos, não argúem as mais das vezes senão ignorância da língua por parte de quem deles se serve. Ou porque não saibam usar das palavras em toda a eficácia e profundeza do seu significado, e ignorem o valor e o emprego dos vocábulos, o manejo e a construção das frases, ou porque não tenham as palavras à sua disposição, muitos crêem que a língua não pode expressar o que, por culpa deles, não lhe sabem fazer dizer, acusam-na de pobre ignorando-lhe os tesoiros, e daí o emprego de construções insólitas e incorrectas, e a criação de palavras novas que o uso não autoriza -- palavras novas para exprimir ideias que de modo nenhum são novas. Tal é o verdadeiro atentado contra a pureza, tal é o verdadeiro neologismo.

Por desconhecerem os recursos da língua, os escritores medíocres criam neologismos, que são as mais das vezes barbarismos; não sabem o valor, das palavras e cometem por isso as mais graves impropriedades. Acusam a língua de insuficiência, tomando por pobreza dela o que é mais que pobreza, preguiça e desídia deles.


(1) Também se inovam palavras pela reprodução, fazendo reviver palavras desaparecidas: quiçá, soer, algo, al, nenhures,... (arcaismos renovados). Os gramáticos e puristas em geral mostram mais tolerância com a restauração de palavras arcaicas do que com os neologismos.

Fonte

in "Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa", colecção Linguagem, ed. Presença/INL-FCRB-NE

Sobre o autor

Mário Castelo Branco Barreto (Rio de Janeiro 1879 – 1931), filólogo. Estudou no Colégio Militar e formou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Mas sua vocação para o magistério fê-lo passar a vida ensinando a língua portuguesa. Colaborou em vários jornais e revistas, sempre respondendo a questões de linguagem propostas por consulentes de todo o país. É autor de Estudos da Língua Portuguesa (1903), Novos Estudos da Língua Portuguesa (1911), Através do Dicionário e da Gramática (1927), entre outros.