Nas comédias em prosa e no verso heróico - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Nas comédias em prosa e no verso heróico

Este trecho é tirado do "Diálogo em defensão da língua portuguesa", e reproduz uma fala da personagem Petrónio, em resposta a Falêncio, que dizia ser a língua castelhana mais suave e bem-soante que a portuguesa, e tanto, que muitos Portugueses escreviam em castelhano.

Não é bastante razão, essa que alegais, para que vossa língua por esse respeito mereça ser preferida à nossa (portuguesa). Porque haveis de saber que cada língua por si tem um estilo mais próprio e em que melhor parece, como é a grega nos versos, a latina nas orações, a toscana nos sonetos, a portuguesa nas comédias em prosa e no verso heróico, a castelhana nas trovas redondas e garridas, que naturalmente parecem feitas e inventadas para ela. E de aqui veio a muitos Portugueses, vendo quão bem parecia neste estilo e que nela se achavam mais facilmente consoantes para verso, exercitarem-na por seu passatempo em églogas, canções, elegias e cantos pastoris, que são matérias leves e acomodadas ao estilo da mesma língua.

Mas, cousas graves e de importância, não me dareis nenhum Português antigo nem moderno que as tratasse nem escrevesse em vossa língua. E se quereis saber quão pouca necessidade temos dela, vede o estilo das comédias e dos versos do nosso verdadeiro Português Francisco de Sá de Miranda, que foi o primeiro que nesta nossa Lusitânia o descobriu, com tamanha admiração que em todos em geral ficou confessada esta verdade.

Vede a Ásia daquela famoso e excelente escritor João de Barros, que por ela em Veneza está preferido a Ptolomeu. Vede a primeira e segunda parte da Imagem da Vida Cristã, daquele doutíssimo varão Frei Heitor Pinto, que agora em nossos dias saiu à luz. Vede o estilo da linguagem de Lourenço de Cáceres, de Francisco de Morais, de Jorge Ferreira, de António Pinto, e de outros ilustres varões que na prosa tanto se assinalaram, descobrindo com seus engenhos peregrinos o segredo da gravidade e formosura deste nosso português.

Pois, se no verso heróico vos parece que a vossa lhe pode fazer vantagem, vede as obras do nosso famoso poeta Luís de Camões, de cuja fama o Tempo nunca triunfará. Vede a brandura daquele raro espírito Diogo Bernardes. Vede finalmente as do Doutor António Ferreira, de que o mundo tantos louvores canta; e em cada um destes autores achareis um estilo tão excelente, e tão natural, e acomodado a esta nossa língua, que forçadamente haveis de vir a descer-vos dessa vossa opinião, e confessar comigo ser ela indigna desse nome que vós lhe dais.

Pois, se quereis ver a língua de que é mais vizinha, e donde manou, vede a "Arte de Gramática da Língua Portuguesa" que o mesmo João de Barros fez, e o mesmo podeis ver no "Livro da Antiguidade" (De Antiquitatibus Lusitaniae") do Mestre André de Resende, onde claramente se mostra que com pouca corrupção deixa de ser latina.

Enfim, que, se alguma com razão se pode chamar bárbara, é a vossa, a qual toma da língua arábica a maior parte dos vocábulos. Falais de papo, com aspiração; e assim fica uma linguagem imperfeita, e mais corrupta do que dizeis que a nossa é...

 

Fonte

Título de Ciberdúvidas. "Diálogo em defensão da língua portuguesa", in "Paladinos da Linguagem", 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921.

Sobre o autor

Pêro de Magalhães Gândavo (Braga, 1540 – 1580) foi um historiador e cronista português, professor de Latim e Português no norte do país e secretário na Torre do Tombo. É autor do livro História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, obra que narra o estabelecimento dos portugueses na América e que retrata as plantas, os indígenas e os animais do país.