Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem – se algum houve – as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.
* Abrimos uma excepção: nesta antologia, em que apenas entram textos sobre a Língua Portuguesa, incluímos agora um soneto com outro tema. Por dois motivos: porque o grande poeta português justifica a excepção e porque o tema da mudança não é alheio a nenhuma língua. O sentido do último verso («que não se muda já como soía») tem motivado controvérsia. Mas houve quem, baseado na ode «Já a calma nos deixou», o interpretasse assim: tudo muda, menos o rigor da mulher amada. Especulando, poderíamos dizer algo semelhante acerca do rigor da língua. Mesmo depois de morta, como é o caso da latina, o rigor permanece. Evidentemente: enquanto houver alguém que a essa língua se devote.
— J.C.B.
Cf. Os factos e as lendas da vida e obra de Luís Vaz de Camões + O Jovem Camões em Coimbra + «Camões não ficou agarrado ao seu tempo. O que ele diz ainda ecoa»
"Lírica Completa II", Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Lisboa, 1980, com introdução e not