Acontece quase sempre que, tendo adquirido nas aulas e liceus, nas academias e escolas superiores, mui avultados conhecimentos das línguas estranhas, antigas e modernas, achamo-nos por extremo pobres dos conhecimentos da nossa, que falamos só por a ouvir falar, e talvez com os erros vulgares a que não atendemos, ou que porventura defendemos só porque os bebemos com o leite, e ninguém deles nos advertiu.
Acontece mais que, familiarizados com as belezas das outras línguas, e não tendo nenhuma notícia das da nossa, a acusamos de imperfeita e de pobre, e porventura a desprezamos, sendo que a imperfeição e a pobreza estão em nós e não nela, e devêramos começar por bem aprendê-la, para a compararmos com as outras; e então conheceríamos nossa injustiça, e faríamos dela o bem merecido apreço que fizeram Camões e Vieira.
Também acontece que muitos, grandes admiradores da língua em que tantos poetas cantaram os heróicos feitos nacionais, e justos apreciadores de suas belezas poéticas, desdenham dar-se ao estudo de seu mecanismo gramatical, e não se acham bem providos dum sem-número de expressões elegantes e formosas, de que abundam nossos bons escritores, e que uma educação incompleta não soube dar-lhes. Para obviar a estes inconvenientes um só meio há, mas seguro e eficaz, o qual consiste em fazer aprender de cor aos meninos, desde seus primeiros anos, os lugares mais notáveis de nossos bons autores, mormente dos poetas, para deste modo se familiarizarem com a boa linguagem de seus maiores, e não ficarem, por assim dizer, estranhos em sua própria terra.
Título de Ciberdúvidas. "Ornamentos da memória", etc. Paris, 1869, Prólogo, in "Paladinos da Linguagem", 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921.