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Filho — A língua portuguesa, quando esmorecer por falta de verbo ou nome que compreenda sucintamente alguma coisa, poderá formar algum vocábulo aprazível ao ouvido, sem precisar falar por rodeios, como fazem alguns?
Pai — Sim, porque a licença que Horácio, em sua Arte Poética, dá aos latinos para comporem vocábulos novos, conquanto saiam da fonte grega, essa poderemos tomar, se os derivarmos da latina.
Filho — Logo, por essa maneira, nos faremos copiosos de vocábulos e, aceitos usualmente, tornar-se-ão tão próprios como são os latinos que ora temos – que se tomaram por esse modo.
Pai — Eu não falo naqueles vocábulos latinos de que a Espanha tomou posse antigamente; mas, agora, em nossos tempos, com a ajuda da impressão, deu-se tanto a gente castelhana e italiana e francesa às trasladações latinas, usurpando vocábulos, que os fez mais elegantes ora do que foram há cinqüenta anos. Este exercício, se nós o usássemos, já teríamos conquistada a língua latina, como temos a África e a Ásia, à conquista das quais nos demos mais que às trasladações latinas. E o sinal desta verdade é que não somente temos vitória nestas regiões, mas ainda lhes tomamos muitos vocábulos: como podemos ver em todos os que começam em "al" e em "xa", e os que acabam em "z", os quais são mouriscos. E, agora, da conquista da Ásia, tomamos "chatinar" por "mercadejar", "veniaga" por "mercadoria", "lascarim" por "soldado", "zumbaia" por "mesura" e "cortesia", e outros vocábulos que são já tão naturais na boca dos homens que naquelas partes andaram, como seu próprio português. Assim que, podemos usar de alguns termos latinos que o ouvido bem receba, porque ele julga a linguagem e a música, e é censor de ambas. E, consentindo-os um dia, ficarão perpetuamente.
Filho – Poderão todos os que sabem latim tomar esta licença para derivar vocábulos dele a nós?
Pai — Não são todos licenciados para isso. E os que o forem, o serão em alguns vocábulos que a natureza da nossa linguagem aceite. Porque – a meu juízo – tão mau parece um vocábulo latino que nos foi mal derivado como algumas palavras que achamos em escrituras antigas, as quais o tempo deixou esquecer. A mim, muito me contentam os termos que se conformam com o latim, embora sejam antigos: cá destes devemo-nos muito prezar, quando acharmos não serem tão corruptos que sua menção lhes faça perder a autoridade. E não somente dos que achamos nas escrituras antigas, mas de muitos que se usam entre o Douro e o Minho, conservadores da semente portuguesa, os quais alguns indoutos desprezam, por não saberem a raiz de onde provêm. (...)
Extrato do livro O diálogo em louvor da nossa linguagem de João de Barros (2.ª edição, feita em 1785 pelos monges da Cartucha de Évora), no qual, no diálgo entre pai e filho, subjaz a defesa do português como língua materna, e não o até então dominante latim nas elites políticas e religiosas.