Como devem ser na escola as lições da linguagem - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Como devem ser na escola as lições da linguagem

Um livro, para a escola velha, é um frasquinho cheio de «ciência»; um livro, para o laboratório, é como um estojo com instrumentos; por isso ele é decorado dentro da aula, e por isso no laboratório ele é usado.

As ideias, para o cientista, são ferramentas e são bússolas; para os estudantes, são ainda como panóplias de museu...

Precisa a escola de compreender: 1.º, que as ideias são instrumentos (instrumentos de experiência); 2.º, que a experiência não é a armazenagem dos golpes recebidos do exterior, mas a nossa ofensiva sobre as coisas, e os resultados que de aí provêm para a nossa futura actividade. Cumpre que nos objectos de uso humano, que em toda ideia de ciência humana, se veja o resultado de um trabalho, de muitos e pacientes esforços do homem.

Que é a linguagem, na realidade? Um instrumento de pensar e agir, uma moeda de uso diário no intercâmbio social; mas, nos programas, a linguagem não é um instrumento de intercâmbio, é uma peça de numismática: observa-se e revolve-se, põe-se a pino e põe-se chata e recoloca-se na vitrina de Luís Camões ou de António Vieira, não se estuda pelo seu uso, como instrumento de bem pensar... A ciência, a linguagem, a ginástica, o desenho, na escola do futuro, serão considerados como instrumentos de uma actividade social; e subordinados, como tais, aos fins superiores da acção humana – à humanização de todos os homens.

Subordinar o ensino — e todo o ensino — aos fins superiores da acção humana, é subordinar a escola inteira à actividade da Razão. Para que se exerça essa actividade há-de ensinar-se cada ciência segundo processos investigadores (onde as ideias são sugeridas pelos problemas a resolver) e definir no estudo da linguagem o objecto do seu ensino como o do «falar correctamente», mas não só, como até aqui, no ponto de vista da boa gramática, senão que também, e em primeiro lugar, no da boa observação e da boa lógica, procurando exprimir pelas palavras próprias uma realidade bem observada, ou um pensamento bem conduzido — e para isso, como é óbvio, abrir largas e luminosas as alamedas da intelecção.

Antes da correcção gramatical da frase, deve considerar-se a do pensamento que com essa frase se quis exprimir. As lições de língua serão de lógica, de observação, de estética — e de probidade.

 

Fonte

Dos "Ensaios", Tomo I, Rio-Porto, 1920, pág. 157 e ss. In "Paladinos da Linguagem" vol. II.

Sobre o autor

António Sérgio (Damão, 1883 – Lisboa, 1969), foi um importante intelectual e pensador português. Mesmo enveredando por estudo militares, primeiramente no Colégio Militar e posteriormente na Escola Naval, sentiu grande interesse pela poesia e pela filosofia o que o levou a concorrer ao cargo de assistente da seção de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Agregou a este cargo a colaboração em revistas como a Águia e a Seara Nova, tal como a direção da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.