Cinto que não sinto * - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Cinto que não sinto *

Alguns anos atrás, em Campolide, Lisboa, onde moro, deparei-me com um homem de certa idade, a coxear e a tentar driblar a chuva e a ventania. Como no poema de Fernando Pessoa, eu iria adiante, ele passaria também no sentido contrário, e nunca haveria um registo do transeunte anónimo que enfrentava a sua circunstância, ou seja, um quase fim de vida a arrastar-se dolorosamente pela rua. Mas não foi assim, porque assim não quiseram os fados da história. Ele, ao passar, disse-me num tom que adivinhei filosófico:

– Sinto... a arrastar.

Ora, o que dizer a um companheiro de viagem da vida? Pois se ele mesmo me oferecia a constatação e a sentença a que estava destinado a cumprir... A partir dali, a vida seria para ele o seu próprio degredo. Sim, essa vida que, boa ou má, dela já tinha devorado todo o miolo, essa mesma vida que agora o empurrava pela escada abaixo da existência, numa queda vertiginosa que não permitia qualquer inflexão.

Medi o homem e a situação. E pensei em rematar a conversa com uma velha frase que diz tudo e não diz absolutamente nada.

– Eu sei, é a vida!

O ancião não ficou satisfeito com a minha filosofia de pacotilha. Provavelmente adivinhou-me um homem das letras, ou coleccionador delas, e voltou a espicaçar-me:

– Sinto... a arrastar.

Pela segunda vez, a enfrentar o seu Gólgota, o homem atirava-me a frase. Desta vez não a entendi como uma exacerbação filosófica, mas sim como uma chicotada verbal contra a minha notória insensibilidade. Se o homem ali estava, depois de anos e anos na dança do vira da vida, era justo que o seu interlocutor revelasse alguma atenção, um gesto de contrariedade frente às agruras vergastadas pelo tempo, um braço de apoio ou ainda, quem sabe?, uma lágrima fortuita a balançar solidariedade no canto do olho.

Mas não, com os diabos. Eu estava num daqueles dias pessoanos. Doía-me a alma, a metafísica, e a chuva rolava irremediavelmente concreta a fazer cócegas irritantes no meu lado menos solidário. Abri os braços num comentário visual do como quem diz: o que se há-de fazer? Julguei-o suficiente e avancei na rua a querer sair do filme daquela situação. Logo percebi que não me safava assim tão rapidamente. Desta vez o homem usou de toda a energia e ênfase de que foi capaz para fazer perceber o meu equívoco.– Meu amigo, não falo de mim. O que sinto não tem nada com o que lhe quero fazer entender. Cinto... a arrastar. O cinto da sua gabardina está a arrastar, compreendeu?

Fiquei mudo e estático. Durante uma fracção de segundo senti uma espécie de inversão dos papéis, já que eu, sim, fora o velho e coxo desta história, porque sublinhara a minha rigidez e insensibilidade, enquanto o meu interlocutor brandira a velha solidariedade humana.

Eu apenas respondi com a humildade possível que a situação requeria:

– Sinto muito... e recolhi alguns centímetros de um cinto arreliador que teimava em banhar-se na chuva e na lama na rua onde moro.

...

Ainda um comentário: esta é a nossa língua, diversa, plena de signos, com um sem-fim de multiplicidades. E, por vezes, deliciosamente trocadilhesca, a permitir um equívoco existencial como este que acabo de narrar.

Sobre o autor

José Alberto Braga (Braga, 1944) é um jornalista e escritor português. Emigrou para o brasil aos 15 anos onde trabalhou como jornalista, fundando um jornal e duas revistas dedicadas aos assuntos portugueses, e desenvolveu atividades ligadas ao teatro, à rádio e à televisão. Em 1982 regressa a Portugal colaborando, aqui, em diversos jornais (Diário de Notícias e Jornal de Letras), participou na criação da CPLP e fundou a revista Lusofonia. Publicou ainda textos de humor em algumas revistas e foi comentador na televisão. Enquanto escritor publicou alguns livros, nomeadamente O Guia da Sobrevivência Política (1991), O Caçador dos Étes (2000) e Fábulas Imorais (2005).