A sombra das palavras - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A sombra das palavras

Coimbra, 7 de Julho.

As palavras renascem.
Folhas de clorofila humana,
Brotam, crescem,
Murcham, desaparecem,
Mas renascem.

Que frescura teria a caravana,
A caminho da morte ou do nirvana,
Se os poetas cantassem!

 

Coimbra, 14 de Julho

— Chegou meu pai. Mandei-o vir espairecer. Lépido e seco, com os seus oitenta e tal, desembarcou na estação com os olhos azuis ávidos de novidades. Veio ver as festas e não tem perdido pitada. Tudo lhe interessa, desde a mão da Rainha Santa, às espanholas dum rancho da Corunha. Na disponibilidade do seu espírito cabem tanto os grandes quadros panorâmicos, como as pequenas manchas gestuais. E S. Martinho pode estar certo de que terá, quando ele regressar, um relato completo, pitoresco e animado, do que se passou aqui. Um novo Fernão Lopes oral fará a crónica viva de meia dúzia de dias de ventura.

A civilização e a cultura mataram a espontaneidade da observação e da redacção. E a história que nós, os letrados, fazemos é uma decantação que dista da realidade o que o ergotino dista da cravagem do centeio. O veneno das coisas mantém-se realmente, talvez mais mortal ainda. Mas o enredo, a graça, a naturalidade, o cheiro e o sabor de cada acontecimento — isso perdeu-se. Cronista, hoje em dia, só o povo. Ele é que sabe ainda olhar com virgindade o movimento dos homens e a instintiva força que os arrasta. E formular numa hipérbole, depois, a síntese da sua descoberta.

Já ninguém sabe andar a pé... — e a observação, na sua simplicidade, deu-me a explicação profunda da avalancha de carros que progressivamente vão atravancando as nossas ruas.

O único defeito desta pureza fotográfica e fonográfica é uma evidente incapacidade de selecção. Livro único para toda uma existência, tem que forçosamente descrever o principal e o acessório. Mas que achados, de vez em quando!

O comboio da Lousa, em dada altura, interrompeu a procissão. Houve protestos. E logo o velho, com ironia:

— Ele tem horário, e a santa não...

 

Fonte
Excerto do "Diário V", 3.ª edição revista, Coimbra Editora.

Sobre o autor

Autor de uma produção literária vasta e variada, largamente reconhecida. Nasceu em S. Martinho de Anta em 12 de agosto de 1907 e morreu em Coimbra em 17 de janeiro de 1995. Destacou-se no domínio da poesia com Orfeu Rebelde, Cântico do Homem; na obra de ficção distingue-se A Criação do Mundo, Bichos, Novos Contos da Montanha, entre outros. O Diário ocupa um lugar de grande relevo na sua obra. Recebeu o Prémio Camões em 1989 e o prémio Vida Literária em 1992.