A Pêro de Andrade Caminha - Carta III - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A Pêro de Andrade Caminha - Carta III


    Teu nome, Andrade, de qu´é bem qu´esperem
    O de que se já sempre espantaram
    Quantos te vem, quantos despois vierem:
    Teu raro espríto, de que se honraram
5   As Musas, que de si tanto te deram,
    E que tarde outro como a ti darão:
    Os bons escritos teus, que mereceram
    Ou ouro, ou cedro, pois já nessa idade
    Nos mostras neles, quanto em ti quiseram
10 As Musas renovar a antiguidade,
    Em teu amor aceso me levaram
    A esta sã, e confiada liberdade.
    Do que se antigamente mais prezaram
    Todos os que escreveram, foi honrar
15 A própria língua, e nisso trabalharam.
    Cada um andava pola mais ornar
    Com cópia, com sentenças, e com arte,

 


1-3. Teu nome que devem admirar os vindouros, como já admiram os contemporâneos... é o elogio de Caminha.
5. As Musas, que te inspiraram.
7. Ainda moço, os teus versos têm tal inspiração que lembram a poesia dos Gregos e dos Romanos.
8. cedro. Na Antiguidade para conservar os livros aplicava-se-lhes essência de cedro, e colocavam-se em cofres de madeira de cipreste.
11-12. A admiração que tenho por ti determina-me a aconselhar-te. De seguida Ferreira procura, com argumentos, convencer Caminha a escrever em português.
13-17. No verso treze e seguintes o Poeta diz a Caminha que empregue a língua portuguesa, por ele ter escrito muito em castelhano. (Nesta época as duas línguas tinham direitos iguais).

 

 

    Com que pudesse d´outras triunfar.
    Daquela alta elegância quanta parte
    Deves, tu Grécia, àquele tão louvado
    Poeta, que assi soa em toda a parte!
5   E tu gã Tibre, de que estás honrado
    Senão com a pureza dos escritos
    Daquele Mantuano celebrado?
    Garcilasso, e Boscão, que graça, e espritos
    Destes à vossa língua, que Princesa
10 Parece já de todas na arte, e ditos!
    E quem limou assi a língua Francesa
    Senão os seus Franceses curiosos
    Com diligência de honra, e amor acesa?
    E vós ó namorados, e engenhosos
15 Italianos, quanto trabalhastes
    Por serdes entre nós nisto famosos!
    Assi enriquecestes, e apurastes
    Vosso Toscano, que será já tido
    Por tal, qual para sempre o vós deixastes
20 Qual será aquele poívo tão perdido
    Que a si não seja mais afeiçoado
    Qu´a outra estranho, e pouco conhecido?
    Que bárbaro não diz: «mais obrigado

 

 

2. Ferreira incita, mais uma vez, a cultura literária do português, protestando contra a tendência de se escrever em castelhano.
3. Homero.
7. Daquele Virgílio celebrado e cantado?
8. São os introdutores da Escola Italiana em Espanha. Cfr.: «Líamos ao branco Lasso - com seu amigo Boscán, - honra d´Espanha que são». Sá de Miranda, Obras, II, p. 87.
9. Princesa, cheia de mérito.
10. ditos, conceitos.
23. bárbaro, estrangeiro.

 

 

    Sou eu a aproveitar a mim, e aos meus,
    Que àquele, que de mim está arredado?»
    Getas, Arábios, Persas, e Caldeus,
    Gregos, Romãos, e toda a outra gente
5  Nascem, vivem, e morrem para os seus.
    Havermos nós agora a um excelente
    Capitão Português de quantos temos,
    De que se espanta, e treme o Oriente,
    Querer mostrar a ordem, que devemos
    Guardar na guerra em língua estrangeira,
    Quão certo, Andrade, é que nos riremos.
    «Este, dirias, em vez da maneira
    Nos querer ensinar como vençamos,
    Faz outra gente contra nós guerreira.»
15 E tanto é mais razão que o nós sintamos,
    Quanto maior proveito nos cabia,
    E quanto mor o dano, que esperamos.
    O que entre a antiguidade mais se havia
    Por infâmia, era desprezar a terra,
20 De que um era filho, e em que vivia.
    Contra a qual não somente se diz que erra
    O que desemparar, trair, vender,
    Ou lhe mudar a boa paz em guerra,
    Mas quem com quanto dizer, e fazer,
25 Em seu proveito pode, o não fizer,
    Ou seja com bom braço, ou bom saber.
    Duas cousas sòmente se hão mister
    Na República boa, corpo, e alma.
    Ditosa aquela, que ambos bons tiver.
30 O corpo, que por ferro, frio, e calma

 

 

4.Romãos, Romanos.
30. Cfr.: «Por fogo, ferro, água, calma, e frio…», Lusíadas, IV, 104.

 

 

 


    Rompa, e passe sem temor avante,
    Porque o imigo lhe não leve a palma.
    A alma, que seja tão pura, e constante
    Em seu proveito, e honra, que pareça
5  Ter sua glória, e bem sempre diante.
    E que na paz, e guerra se ofereça
    A com prudência, e conselho a ajudar,
    Porque chamar-se filho seu mereça.
    Por isso o grande Deus nos quis formar
10 Por suas santas, mãos de carne, e esprito,
    Porque de ambos havíamos de usar.
    Quem com armas não pode, com escrito
    Poderá fazer tanto, que se ria
    Do qu´os escadrões rompe e inda c´um dito.
15 E não se honrava mais, e mais temia
    Aquela vencedora Esparta antiga
    Cos ditos de Licurgo, que a regia,
    Que des que ela das armas, e ouro amiga.
    Os olhos lhe quebrou, e o desterraram?
20 Pátria contra si mesma ingrata, e imiga.
    Ó quantos mor fama ganharam
    Com a boa pena, que outros, com a espada!
   Quão mais ricas estátuas cá deixaram!
   Quanto foi mais sentida, e mais chorada

 

 

2. Porque o inimigo o não vença.
9. grande Já na Antiguidade magnus em epíteto pertencente aos deuses.
15-16. «e não honravam mais, e não temiam mais a Esparta»...
17. Com a legislação de Licurgo, que subordinava inteiramente o indivíduo ao Estado. (L. é considerado, pela tradição, autor da severa legislação de Esparta).
22. Mais uma vez ocorre o grande tema da Renascença: letras e armas.

 

 


    A morte do alto Homero por seu canto,
    Que a tua, Achiles, que ele fez honrada!
    Pois com quanta razão m´eu mais espanto
    Do que em ti vejo, tanto ver perdido
5  Sinto, o que me assi move a mágoa, e espanto.
    Mostraste-te tégora tão esquecido
    Meu Andrade, da terra, em que nasceste,
    Como se nela não foras nascido.
    Esses teus doces versos, com que ergueste
10 Teu claro nome tanto, e que inda erguer
    Mais se verá, a estranha gente os deste.
    Porque o com que podias nobrecer
    Tua terra, e tua língua lho roubaste,
    Por ires outra língua enriquecer?
15 Cuida melhor que quanto mais honraste,
    E em mais tiveste essa língua estrangeira,
    Tanto a esta tua ingrato te mostraste.
    Volve pois, volve, Andrade, da carreira,
    Que errada levas (com tua paz o digo)
20 Alcançarás tua glória verdadeira.
    Té quando contra nós, contra ti imigo
    Te mostrarás? obrigue-te a razão,
    Que eu, como posso, a tua sombra sigo.
    As mesmas Musas mal te julgarão,
25 Serás em ódio a nós teus naturais,
    Pois, cruel, nos roubas o que em ti nos dão.
    Sejam à boa tenção obras iguais,

 

 

2. Que a tua morte, Aquiles, que ele cantou.
6-8. Ferreira increpa Caminha, que escrevia sobretudo em castelhano.
10. Claro, ilustre.
11. Estranha gente, os Espanhóis.
26. Privas-nos dos frutos da inspiração.

 


    E a boa tenção, e obra à pátria sirva,
    Dêmos a quem nos deu, e devemos mais.
    Floreça, fale, cante, ouça-se, e viva
    A Portuguesa língua, e já onde for
5  Senhora vá de si soberba, e altiva.
    Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
    Culpa é dos que a mal exercitaram:
    Esquecimento nosso, e desamor.
    Mas tu farás, que os que a mal julgaram,
10 E inda as estranhas línguas mais desejam,
    Confessem cedo ant´ela quanto erraram.
    E os que despois de nós vierem, vejam
    Quanto se trabalhou por seu proveito,
    Porque eles para os outros assi sejam.
15 Se me enganei, se tive mau respeito,
    Andrade, tu o julga: mas espero
    De te ser este meu, desejo aceito.
    E em quanto mais não peço, isto só quero.

 

 


3-5. São altamente sentidos estes versos. Por esta Carta verifica-se que Ferreira fortificava a vida da Nação, proclamando a cultura da língua, cônscio de que ela é, além de um meio de coesão, o meio de expressão do sentimento de uma Nacionalidade.
7. Exercitaram, cultivaram.
As referências a Homero (pp- 44, 47, 53, 113, 178) mostram que Ferreira tinha presente o Discurso de Cícero Pro Archia Poeta, que é um elogio da Poesia e das Letras. (Pág. 53, verso 20: «Permulti alii praeterca pugnant inter se atque contendunt». - Outras muitas cidades disputam entre si e contendem (querendo a honra de ser de Homero). Pro Archia Poeta.cap. VIII.

 

 Outros textos do autor

Fonte

in "Poemas Lusitanos", Vol II, Editora Sá da Costa, Lisboa.

Sobre o autor

António Ferreira (Lisboa, 1528 - 1569), escritor e humanista português. É considerado um dos maiores poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa, conhecido como o Horácio português. A sua obra mais conhecida é uma tragédia, Tragédia de Inês de Castro.