Nesse excelente serviço prestado a todos os utentes da língua que é o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa podemos ler vários artigos que discutem o novo acordo ortográfico. O grosso dos argumentos a favor e contra parecem situar-se em dois grupos.
No campo contrário ao acordo está o nacionalismo dos donos da língua. A ideia de base é que quem quiser escrever português genuíno tem de escrever como eles; os outros escrevem português de segunda. Pelo mesmo raciocínio, os verdadeiros donos do português não são afinal os portugueses, na sua maior parte, pois tendem a escrever "républica" ou "voçê", pronunciam as palavras à sua maneira e a gramática que usam não corresponde à que está registada. Aliás, pelo mesmo raciocínio o português devia ser abolido porque é originalmente uma corrupção do latim de pé descalço. Nada de surpreendente neste campo, excepto o velho pensamento racista e colonialista português.
No campo favorável ao acordo os argumentos dividem-se em duas fantasias extravagantes. A primeira é que o acordo permite unificar a língua. A segunda é que isso é importante para fazer circular os livros.
Que o acordo ortográfico não pode unificar uma língua é óbvio se pensarmos que a ortografia é uma pequena parte da língua. As diferenças mais profundas entre o português de Portugal e o do Brasil são gramaticais e lexicais e não ortográficas. E o mesmo acontece provavelmente com as variantes africanas e timorenses da língua. Unificar a ortografia é como unificar a cor dos carros para se ficar com a sensação de que toda a gente anda de BMW. Assim, mesmo que a unificação da língua fizesse circular os livros, o acordo ortográfico seria inútil porque não unifica a língua.
Daqui segue-se que as pretensas vantagens do acordo são como as vantagens de ter gnomos de barro no jardim: são decorativos, mas não fazem a poda por nós. Com acordo ou sem acordo os livros entre os diversos países circulam se os empresários do livro quiserem que circulem – nada mais. Não há qualquer impedimento ortográfico à presença dos livros portugueses no Brasil, por exemplo. Na verdade, na biblioteca de filosofia da minha universidade brasileira encontram-se imensos livros portugueses e nem os meus colegas nem os meus estudantes se queixam da ortografia. Mas todos se queixam de ser muito difícil comprar livros portugueses – o que se deve à inépcia dos editores, e não à ortografia.
O acordo ortográfico revela a mentalidade mágica que é em parte responsável pelo subdesenvolvimento dos países de língua portuguesa. Segundo essa mentalidade, a falta de iniciativa empresarial, de cooperação académica e de produção intelectual resolve-se fazendo leis. E por isso temos leis. O que quase não temos a circular nos nossos países são publicações de qualidade sobre filosofia, história, física ou matemática – ou gramática – e que sejam originalmente escritas em português. Temos traduções ignaras de livros dos anglófonos, que não têm leis sobre a ortografia, e temos leis sobre a ortografia.