Se Angola mantiver a antiga ortografia da língua portuguesa, a designação da moeda nacional – por extenso ou em abreviado – estará errada. Não existe no português anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 nem a letra K nem a letra W. Por outro lado, após a independência, ampliámos o alfabeto do português em Angola a todas as letras dos alfabetos latinos, muitas vezes usadas na denominação de localidades, províncias e pessoas. Por alguma forma de saudosismo, assistiu-se, anos depois, a regressões ortográficas em geografia nacional, sem um dispositivo legal que as tenha determinado.
Ainda assim muitos desses nomes ficaram, principalmente nomes de pessoas. Este é apenas um exemplo de como o português antigo é limitativo.
O Acordo Ortográfico de 1990, assinado por sete países – entre os quais Angola – insere as referidas letras no nosso vocabulário e procede ao corte de consoantes mudas (aquelas que estão na palavra mas não se pronunciam, por exemplo, redacção, óptimo, tecto), bem como de alguns acentos excessivos e inúteis.
Todas as línguas passam, naturalmente, por mudanças ortográficas e introdução de novas palavras, várias delas oriundas de outras línguas. A língua portuguesa é das que mais vocábulos exteriores integrou e das que mais alterações produziu, desde o século XIII, quando o rei D. Dinis a tornou língua oficial de Portugal. Até então, tal categoria era ocupada pelo latim e o português apresentado como dialeto do galego.
Esta mudança suscitou resistências na elite da época, fenómeno que se produziria ao longo dos séculos, sempre que alguma mudança se registava. Mudança às vezes produto do simples uso popular.
Em 1911 foi decretada, por Portugal, uma reforma ortográfica. Em 1931 tentaram um Acordo luso-brasileiro que não funcionou, voltando os dois países a debater o tema e chegar a um acordo em 1945, que ainda deixou margem para dúvidas. O mais recente Acordo (1990 com protocolos modificativos posteriores) foi, portanto, assinado mais de quatro décadas depois, mas desta vez com um dado capital: os cinco países africanos de língua oficial portuguesa (Palop) assinaram e Timor-Leste aderiu depois de ter conquistado a independência. Esta abrangência equivale a uma descolonização do processo decisório sobre a evolução da língua.
Ele toca 1,6 por cento dos vocábulos em vigor em Portugal, Palop e Timor e 0,8 por cento no Brasil. A diferença estava no uso ou redução das consoantes mudas, eixo essencial do Acordo de 1990 e seus posteriores protocolos de 1998 e 2004. Desta vez, procurou-se unificar esses cortes e encerrar as divergências sobre o alcance, nesse ponto, do acordo anterior.
O corte nas consoantes mudas visa aproximar a ortografia da fonética e tornar a escrita mais simples e de mais fácil aprendizado. É um grande sucesso da língua portuguesa, muito observado e estudado em outras línguas onde há buscas para também chegarem àquela aproximação. Como as pronúncias não são idênticas nos vários países e as consoantes mudas num caso podem não sê-lo no outro, o nosso Acordo de 1990 respeita distinções pontuais, considerando-as igualmente corretas. Por exemplo, recepção no Brasil e receção em Portugal e Palops, respectivo no primeiro e respetivo nos segundos ou acadêmico no Brasil e académico nos demais.
O princípio regulador consiste naquilo que realmente se pronuncia. Quer dizer, cada país ou comunidade mantém a sua pronúncia e até as suas expressões idiomáticas, apenas as escreve de forma mais unificada que antes do Acordo.
Não há nenhum obstáculo de pronúncia (ou sotaque) para anular as inúteis consoantes mudas em ótimo, redação, direção, teto, etc.. Também não há consoantes mudas em nenhuma das línguas africanas de Angola, particularmente nas expressões que se pretende inserir como parte do português falado no país. Mesmo quando aparecem duplas consoantes ambas são pronunciadas (exemplos: Ndalu, Ngola, etc.). A elaboração de lista de palavras africanas no português de Angola – com reconhecimento pelos demais signatários – não impede a ratificação do Acordo. Pelo contrário, a ratificação reforça a posição para as inserir que, aliás, não se limitará a uma lista inicial. Surgirão regular ou ciclicamente novas expressões cunhadas nacionalmente, com raízes nas línguas africanas ou originalidades.
O corte de acentos em algumas palavras foi visto como criando situações de duplo sentido (que pode ser verdade apenas no caso de palavra para) mas trata-se de problema há muito existente em qualquer língua. No português basta referir os duplos sentidos de: pelo, como, pena, sede, leve. Questão para ser analisada no próximo Acordo, daqui a algumas décadas.
Simplificações feitas anteriormente – com acordos ou não – deram lugar a rejeições, sendo pharmácia, commércio ou graphya, três das que mais suscitaram essa reação, hoje vista como algo ridículo. É assim normal que hoje se registe fenómeno semelhante, sobretudo de parte de pessoas idosas, com costumes e hábitos muito arraigados, extensivos à escrita. O Prémio Nobel, José Saramago, não se opôs ao Acordo mas afirmou que na sua idade deixava para os corretores a tarefa de introduzir as novas regras.
Infelizmente há rejeições motivadas por intenções hegemónicas, sobretudo em Portugal, ou atitudes autoritárias, de certos responsáveis africanos, para quem a mudança só seria permitida se fossem eles os autores.
No Brasil, as resistências vieram dum misto de ambos e de complexos de grandeza territorial e demográfica, ao ponto de alguns velhos intelectuais condenarem a desaparição do trema.
Além da assinatura, a entrada em vigor do Acordo implica ratificação pelos órgãos legislativos de cada país, tendo sido aceite que ele entraria em vigor após três ratificações, executadas entre 2004 e 2006 pelo Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, aos quais se seguiram Timor-Leste, Guiné-Bissau e Portugal. Faltam Angola e Moçambique, cuja atitude é criadora de isolamento na matéria e prejudicial em termos didáticos.
Com efeito, não sendo países produtores de dicionários nem de gramáticas desenvolvidas, ensinam uma ortografia em contradição com os dicionários e gramáticas que importam de dois países onde o Acordo vigora.
Os custos na atualização dos livros de estudo são também apresentados como obstáculo. Falso. A produção de livros escolares requer constante atualização e desaconselha grandes stocks, precisamente porque o conhecimento evolui em todas as disciplinas. Daí tal facto não ter ultrapassado, nos países da ortografia atualizada, os limites habituais, tanto de subida nos preços dos livros como do alargamento do corpo discente. Assim, a ratificação do Acordo, já assinado por Angola, é uma urgência. Quanto mais se demorar pior para as novas gerações, até porque períodos de transição serão necessários até a aplicação definitiva.
A escrita é como o trânsito: diverso tipo de estradas, de carros e de condutores, mas os sinais têm de ser consensuais para nos entendermos. A língua portuguesa é hoje património comum de vários países e povos – seja materna, principal ou secundária – razão pela qual chegar a Acordos e respeitá-los é demonstração de espírito renovador, respeito mútuo (diplomático até) e vontade de aproximação.
Se estes três atributos existirem, a ratificação será rápida. De contrário empurra-se para o futuro mais um problema, com perfil arcaico no caso.
Texto escrito em conformidade com o Acordo Ortográfico, publicado no Jornal de Angola do dia 20 de julho de 2019.