1. Constitui tema de fundo da entrevista de Vasco Graça Moura o ensino do Português, associado aos problemas que colocam programas e manuais. Não pretendo aqui pronunciar-me sobre essa questão que considero exigir reflexão cuidada e envolvimento de competências diversificadas (ao contrário do que parece pensar o "poeta e político" Vasco Graça Moura, que entregaria apenas a "professores de literatura" a tarefa de repensar alternativas aos programas de Português). O meu objectivo, entretanto, é o de protestar veementemente contra algumas afirmações feitas por Vasco Graça Moura, a que passo de imediato.
2. Diz o entrevistado (...): "Os responsáveis dos programas de Português são linguistas e os linguistas têm ódio à literatura." Independentemente de saber se os responsáveis dos programas são ou não linguistas, considero totalmente leviana – para além de ofensiva... – a afirmação de que os linguistas têm ódio à literatura. Leviandade que o próprio Vasco Graça Moura implicitamente reconhece quando, em resposta à pergunta seguinte da jornalista ("São pessoas que não gostam de ler (...)?"), responde "Não as conheço pessoalmente..." Quem? Os responsáveis pelos programas? Mas os responsáveis pelos programas "são linguistas", ao que parece... Logo, Vasco Graça Moura não conhece pessoalmente os linguistas responsáveis pelos programas, pelo que não pode saber se gostam ou não de ler, mas sabe que "os linguistas têm ódio à literatura"! Não deve sabê-lo por os conhecer pessoalmente (quem conhece pessoalmente "os linguistas"?!). Convenhamos que se trata aqui, apenas, de uma representação, relativamente estereotipada - que alguém com responsabilidade cultural e política deveria ter pejo de exibir, sem qualquer tipo de reserva!
3. Sobre as tais pessoas que não conhece pessoalmente, continua Vasco Graça Moura: "São pessoas para quem a literatura é urna realidade menor, e para quem os esquemas que aprenderam a partir do estruturalismo e de outras teorias, os diagramas, os gráficos e toda essa parafernália, têm mais importância do que dar aos estudantes o meio fundamental para adquirir uma competência a sério na sua língua, que é o património literário acumulado." Em primeiro lugar, sublinhe-se como se mantém a leviandade das afirmações: embora não saiba se essas pessoas gostam ou não de ler, porque não as conhece pessoalmente, sabe delas tudo o que atrás ficou citado... Trata-se, como é evidente, de um "saber" de estereótipos feito... que o entrevistado faz passar como saber de facto. Ao mesmo tempo que, curiosamente, ignora (ou despreza?!) o saber contemporâneo sobre competência linguística ao afirmar que o património literário acumulado constitui "o meio fundamental" para que os estudantes adquiram "uma competência a sério na sua língua". Com a expressão "competência a sério na sua língua", o entrevistado terá certamente em mente qualquer coisa da ordem da "competência literária" – a menos que desconheça (ou despreze, repito) a noção de competência linguística como saber interiorizado a que qualquer falante tem acesso e que é construído, aliás, a partir de um conjunto de dados relativamente reduzido... É o que de facto parece passar-se, uma vez que, mais à frente, se repete, de forma ainda mais clara, uma concepção absolutamente normativa da língua: "(...) todos os que são o grande património da língua portuguesa e sem os quais não se pode aprender a falar português em condições."
4. Com tal confusão, creio que Vasco Graça Moura presta um péssimo serviço à literatura e (ao ensino da literatura): em detrimento do papel que ela pode e deve desempenhar no desenvolvimento cognitivo da pessoa, em particular pela dimensão simbólica que lhe está eminentemente associada, o entrevistado privilegia, no contacto escolar com os grandes autores de língua portuguesa, a aquisição de "modelos" de língua... Mesmo deixando de lado o facto de essa concepção ser cientificamente desajustada, como atrás se viu, tais "modelos" são, no mínimo, pouco operacionais, para aprender/ensinar a falar/escrever português: em que circunstâncias alguém fala ou escreve hoje como escreveu Camões, ou Vieira?!
5. Sem me pronunciar especificamente sobre os programas de Português, posso dizer que considero imprescindível o papel da literatura na formação da juventude. O conhecimento e o trabalho sobre o património cultural têm o seu lugar próprio. Mas o discurso literário, com os géneros, mais ou menos fixos, que em cada época o configuram, é apenas urna das circunstâncias de uso da língua. O confronto com outras – de modo dirigido e organizado! – pode ser um dos melhores meios para reencontrar o valor inestimável do discurso literário. E pode, em simultâneo, contribuir para fazer face a problemas de leitura e de escrita - isto é, facultar o domínio de modelos textuais diversificados e contemporâneos, orais e escritos.
in "Público" do dia 03-02-2004, em resposta à entrevista de Vasco Graça Moura, "A forma como o Português é ensinado é escandalosa"