Uma nova resposta a Vasco Graça Moura, nesta polémica sobre o ensino do Português
Inês Duarte
Lamentavelmente, no espectáculo encenado pelo dr. Graça Moura, os linguistas e quaisquer outros intelectuais com um pingo de rigor e honestidade científica seriam um erro de "casting". É que o ensino do Português é um tema demasiado sério para um guião elaborado com tanta leviandade, paroquialismo e arrogância.
A prosa do dr. Graça Moura publicada na "Actual" de 13 de Março faz justiça a este parágrafo final do meu texto saído a 6 de Março na mesma revista: deslocada no tom, desadequada na selecção e combinação dos níveis de língua que utiliza, incipiente no domínio das estratégias de progressão temática e, "last but not least", destituída de substância (como todos sabemos, o recurso à trauliteirice é sintoma de falta de razões). É a demonstração prática de que ele não é interlocutor para a procura de caminhos para a melhoria da qualidade do ensino do Português.
Recorde-se que, no texto publicado a 7 de Março, eu rebatia, com argumentos e factos, duas afirmações do dr. Graça Moura na entrevista que concedeu à revista "Pública" de 1 de Fevereiro: "Os linguistas têm ódio à literatura" e "os responsáveis dos programas de Português são linguistas". O dr. Graça Moura, numa desajeitada e deselegante fuga para a frente (ou para todos os lados?), decide erigir-me em "ideóloga" de programas de que não sou autora e que critiquei nas sedes e alturas próprias, continuando a evidenciar total impreparação para contribuir construtivamente para o debate sobre o ensino da língua materna e sobre a formação de professores de Português – debate que, aliás, excede largamente a questão dos programas.
Essa impreparação revela-a, por exemplo, nas diatribes contra o Português padrão e nas apressadas conclusões que a partir daí tira sobre a minha estreiteza de vistas quanto aos objectivos da disciplina de Português. O dr. Graça Moura não podia estar mais enganado. O termo "Português padrão" designa a variedade social e geográfica da língua portuguesa que constitui o modelo da língua escrita, um termo sinónimo do de "norma", utilizado por autores inscritos na matriz estruturalista (aconselho-o a ler a este respeito Coseriu e, relativamente à língua portuguesa, pelo menos Lindley Cintra e Celso Cunha). A insistência na necessidade de levar todos os alunos a aceder ao Português padrão responde às novas realidades resultantes da massificação do ensino (muitas crianças chegam hoje à escola dominando uma variedade social e geográfica distinta da norma) e reage contra práticas de "laissez dire, laissez écrire" com uma presença muito forte entre nós nas décadas de 70 e 80. Portanto, e ao contrário do que o dr. Graça Moura, por ignorância, infere, eu estou desde sempre do lado daqueles que consideram a língua escrita um objecto de estudo privilegiado na disciplina de Língua Portuguesa. E estou-o, entre outras razões, porque quem não domina a variedade linguística que constitui o modelo da língua escrita não compreende nem interpreta textos literários e não pode, por isso, ter o prazer da fruição estético-literária.
A ignorância de que "Português padrão" é um termo técnico que designa o conceito que referi no parágrafo anterior leva o dr. Graça Moura a tecer, sobre uma afirmação que fiz numa comunicação publicada em 1996 – um professor de Português tem de ser um bom utilizador do Português padrão —comentários surrealistas, baseados no significado corrente da palavra "padrão". Ou seja, sem disso ter consciência, o dr. Graça Moura manifesta-se contra a posição segundo a qual o comportamento, oral e escrito, de um professor de Língua Portuguesa deve fornecer aos seus alunos um modelo da língua oral e da língua escrita erigidas como norma, numa dada época, na nossa sociedade. E demarca-se da afirmação de que, para que os seus alunos dominem esses modelos, o professor deve servir-se e ensiná-los a servirem-se de instrumentos de normalização linguística como gramáticas, prontuários ortográficos e dicionários de vários tipos. Estas posições, que em várias ocasiões me custaram o rótulo de elitista, merecem-me agora a descabida acusação de um "parti-pris" sociológico que se satisfaz na complacência com a contribuição nula da escola para o desenvolvimento pleno dos alunos como falantes, leitores e escritores.
Concedo ao dr. Graça Moura o benefício da dúvida, imputando as conclusões que retira do artigo de 1996 que cita e dos pareceres sobre programas elaborados pelo meu departamento a dificuldades suas de leitura de textos não literários. De facto, da leitura dos documentos que refere, bem como da bibliografia da minha autoria anterior e posterior a 1996, nenhum leitor competente pode inferir o que o dr. Graça Moura ilegitimamente infere: um desempenho deste tipo no PISA ter-lhe-ia, certamente, valido uma pontuação muito desconfortável.
A gravidade de atitudes como a do dr. Graça Moura, pesporrentas, desinformadas e alheias a qualquer reflexão sobre o ensino da língua materna e a formação de professores no contexto das novas exigências da sociedade do conhecimento e do estado actual de conhecimentos sobre o processo de aquisição e desenvolvimento da língua materna e sobre as bases neurobiológicas e os processos psicolinguísticos que suportam os seus usos, reside em pretenderem abrir clivagens artificiais entre especialistas com formações cuja complementaridade na formação inicial e contínua de professores de Português ninguém nega (a não ser o Dr.. Graça Moura). O que importa e me move é a melhoria da qualidade do ensino da nossa língua. E, como é evidente, só estou disposta a discutir os caminhos para a atingir com quem tenha fundamentação científica, honestidade intelectual e educação suficiente para o fazer. P.S. - O Relatório da Doutora Fernanda Irene Fonseca que o dr. Graça Moura refere data de 1996 (e não de 1966). Ainda bem que o dr. Graça Moura leu o excerto que esta linguista, minha prezada colega e amiga, lhe enviou juntamente com o texto em que protestava contra a sua declaração à "Pública" de que "os linguistas têm ódio à literatura". Infelizmente, não creio que tenha aproveitado quanto devia dessa leitura...
Réplica de Inês Duarte a Vasco Graça Moura, *in "Actual"/"Expresso", do dia 27-03- 2004