«Como surgiu a linguagem humana? Deixo aqui uma hipótese: a partir de sons que usávamos em certas situações de forma instintiva ou na imitação de animais, passámos a conseguir desligar o símbolo do seu significado, ou seja, a criar símbolos sempre que necessário.»
A origem remota
No caso do Universo e da vida, conhecemos melhor ou pior o mecanismo que levou ao desenvolvimento de cada um dos fenómenos (a morte e nascimento das estrelas; a evolução por selecção natural), mas não conseguimos chegar ao momento 0, mesmo à origem (a criação do Universo; a criação da vida). Como vimos nos primeiros capítulos do livro, temos teorias, temos hipóteses, temos até belíssimas histórias − mas estamos longe de ter certezas.
Acontece o mesmo com a linguagem. Sabemos bem como se desenvolvem as línguas, como divergem, mas não sabemos como surgiu a primeira língua na Terra. Como em tudo o que é humano, é bem provável que tenha sido um processo gradual, ao longo de milhares ou até mesmo de milhões de anos.
Se andarmos para trás no tempo e chegarmos ao antepassado comum entre nós e os chimpanzés, encontraremos um animal que tem linguagem animal. Todos os animais comunicam uns com os outros. Nós também temos linguagem animal. Nós rimo-nos, nós gritamos, nós gememos, entre muitos outros sons que são partilhados por todos os humanos e estão inscritos nos genes. Fazem parte da nossa comunicação. Nós até comunicamos quando coramos, por exemplo.
A linguagem animal e a linguagem humana
Algumas espécies de animais têm, sabe-se hoje, linguagens com características de que não suspeitávamos até há pouco tempo e todas têm formas de comunicar1 − mas não é difícil reconhecer que as línguas humanas têm características muito próprias2.
As línguas humanas não estão inscritas nos genes. As línguas humanas são flexíveis e adaptam-se facilmente a novas realidades (há palavras a surgir todos os dias). As línguas humanas permitem falar do passado e do futuro (mesmo as línguas que não têm tempos verbais correspondentes ao nosso pretérito e ao nosso futuro permitem fazer referência ao passado e ao futuro3 e todas as línguas mexem directamente com a nossa imaginação.
As línguas humanas, de forma mais estrita, usam aquilo que os linguistas denominam dupla articulação, em que temos um conjunto limitado de sons sem significado que se conjugam para criar unidades com significado. É um sistema bastante engenhoso − mas que foi criado ao longo do tempo, sem que ninguém o tenha imaginado de raiz.
Uma grande invenção
Como surgiu a linguagem humana? Deixo aqui uma hipótese: a partir de sons que usávamos em certas situações de forma instintiva ou na imitação de animais, passámos a conseguir desligar o símbolo do seu significado, ou seja, a criar símbolos sempre que necessário.
Imaginemos um grupo de seres humanos, na savana, a caçar. Um deles vê, à frente, uma gazela. Habitualmente, usam um som dito em surdina, para que todos reparem. Com o tempo, encontram vários sons para diferentes animais. Estamos perante sinais, que vão sendo aprendidos pelas novas gerações. Estes sinais, a certa altura, começam a ser usados noutros contextos, para «conversar» sobre os animais. Nascem as palavras. Um som poderia representar um tigre, mas também pode ter passado a significar um animal, usando-se outro som (ou uma conjugação de sons) para representar o tigre em si. Alguém, à noite, refere vários tigres, usando, provavelmente, uma duplicação dos sons usados para se referirem àquele animal.
Com o tempo, ganham-se hábitos de ordenação desses símbolos sonoros − seria possível dizer gazela caçar eu, mas nunca eu caçar gazela4. Nasce a gramática. A língua é criada a partir de necessidades práticas, ganha características gramaticais particulares, que mais não são do que a cristalização de hábitos linguísticos adquiridos sem grande lógica, e conhecer essas características (essa gramática) torna-se essencial para viver na comunidade que usa essa língua. Quem falava para caçar também era capaz de falar para impressionar a vizinha − e se não fizesse, teria menos hipóteses de ter filhos com a vizinha.
As línguas são sistemas simbólicos muito complexos, com base em sons ou gestos. Com esses símbolos, comunicamos e criamos pensamentos na cabeça dos outros (obrigamo-los a pensar em tigres). Trabalhamos com a imaginação dos outros. Passamos a pensar em conjunto, nem que seja para saber como caçar o tigre − ou atacar a tribo do lado. Quanto mais o cérebro aumentava, mais capacidade tínhamos para manipular símbolos.
A invenção do símbolo é a grande invenção da humanidade. Será que o cérebro aumentou para acomodar esta invenção ou esta invenção usou um cérebro especialmente poderoso? Provavelmente, as duas hipóteses estão correctas e reforçam-se. A linguagem humana será o resultado de uma corrida ao armamento intelectual.
A corrida ao armamento intelectual
Imaginemos dois países vizinhos que são inimigos (não é difícil encontrar exemplos). Um deles compra umas quantas armas. O outro não quer ficar atrás e compra ainda mais armas. O vizinho tem de comprar mais armas para acompanhar o que o inimigo fez − e por aí adiante. Estamos perante uma corrida ao armamento, um círculo vicioso e perigoso.
Na evolução das espécies, também ocorrem corridas ao armamento. Imaginemos, por exemplo, um conjunto de arbustos que precisam de ter exposição ao sol para sobreviver. Ora, se um arbusto em particular sofre uma mutação no seu ADN que o torna ligeiramente mais alto e com mais folhas no topo, vai conseguir receber mais luz do sol e, ao mesmo tempo, vai impedir que os arbustos do lado recebam tanta luz. Vai viver mais e reproduzir-se mais.
Em breve, tal como as células rapidinhas que vimos lá atrás [capítulo 2 do livro], os genes deste arbusto vão começar a espalhar-se mais do que os arbustos um pouco mais baixos. Os arbustos mais baixos passam a ter uma desvantagem que não existia antes. Os arbustos com mutações que os tornam mais altos ganham. O gene que leva a uma maior altura começa a ser preponderante − e assim surgem as árvores. Todos os arbustos viviam felizes e contentes antes desta guerra. Não há uma vantagem inerente à maior altura: a única vantagem é conseguir ganhar aos arbustos do lado.
Numa espécie como a nossa, o uso dos símbolos partilhados leva a que a capacidade de viver em sociedade seja muito importante. Assim, quem sabe usar melhor estes símbolos, sobrevive mais tempo, e reproduz-se mais porque consegue perceber melhor os outros, consegue ganhar mais poder, ser bem-visto, seduzir. Estamos perante uma corrida ao armamento intelectual. Quem tem o cérebro mais adaptado ao uso destes símbolos reproduz-se mais. Se há uma mutação que aumenta ligeiramente as capacidades cognitivas do cérebro, com consequente maior facilidade em usar a linguagem, essa mutação espalha-se com facilidade. Quem não a tem começa a ter mais dificuldade em reproduzir-se.
Se este processo se repetir ao longo de milhões de anos, acabamos com uma espécie muito bem adaptada à linguagem, ao seu uso em interesse próprio, à colaboração, à vida em sociedade.
Somos uma espécie particularmente social − e uma espécie que consegue inventar muitas ferramentas e hábitos que transcendem aquilo que a evolução determinou. O cérebro criado pela evolução tornou-se, ele próprio, criador de mundos e invenções.
A linguagem humana não é essencial para sobreviver – todas as outras espécies do mundo o provam − mas é essencial para que um ser humano sobreviva e floresça no nicho em que a nossa espécie se encaixou: sociedades complexas, baseadas em símbolos, que são também sociedades tribais e verbais, que podem estar em qualquer lugar do mundo. A própria complexidade da nossa vida social e cultural é o nicho ao qual estamos bem adaptados.
Um belo excesso
Como é que isto aconteceu? Como é que a linguagem se tornou essencial aos seres humanos? Há duas grandes correntes.
Alguns linguistas sublinham que a linguagem é uma ferramenta cultural, inventada ao longo da nossa História. No fundo, o uso da linguagem será como a roda: uma vez inventada, tornou-se tão útil que ninguém a dispensa. Mas não nascemos − segundo esta perspectiva − com algum tipo de mecanismo linguístico impresso no cérebro.
Outros linguistas sublinham o carácter biológico da linguagem: temos aparelhos fonadores e cérebros adaptados ao uso da linguagem − as nossas gargantas seriam diferentes se não fosse a necessidade de falar. Isto, claro, não significa que as línguas não sejam artefactos culturais − mas usam um mecanismo biológico (o aparelho fonador e uma peculiar arquitectura do cérebro) partilhado por todos os humanos. Esta capacidade linguística será fruto de uma mutação genética particular, que se espalhou pela espécie.
Sem pretender resolver um debate que irá continuar por muitas e boas décadas, a linguagem humana parece ser um facto cultural e biológico. Pelo menos, parece que os diferentes idiomas são transmitidos culturalmente, mas todos os seres humanos têm cérebros e bocas biologicamente preparados para falar.
O corpo humano e o cérebro humano evoluíram para se adaptar a esta nova necessidade: a de saber lidar com este fenómeno colectivo que é a linguagem. Com um cérebro adaptado a usar a linguagem, a linguagem ganhou cada vez mais sofisticação e importância. A garganta e a boca também se adaptaram à nova realidade, permitindo criar mais sons, com mais clareza. O cérebro e os órgãos do aparelho fonador co-evoluíram com a linguagem5. Cada novo ser humano que nascia aprendia de forma fácil e rápida a falar a língua da sua tribo. Aprender a falar é tão natural, para nós, como aprender a andar. Absorvemos a língua ou as línguas que encontramos à volta6. Na verdade, nós ensinamos, mesmo sem querer. Temos técnicas, quase inconscientes, para ensinar a falar − e as crianças aprendem.
A linguagem é um excesso criado pela extraordinária inteligência surgida de uma corrida ao armamento cerebral. É um excesso que nos dá a poesia, as histórias, a imaginação, a ciência. Esse excesso está também na música, na dança, nas pinturas, está na cultura de que a linguagem é uma das mais esplendorosas manifestações. Como no caso da criação das árvores, as guerras ao armamento, na natureza, são bem capazes de criar beleza.
O texto acima é um excerto do capítulo 4 («2 000 000 a. C. | A origem das línguas») do livro História do Português desde o Big Bang (Guerra e Paz, 2021).
1 Para um resumo do que se sabe sobre a linguagem animal e a sua comparação com a linguagem humana, veja-se o capítulo «Do animals communicate using a language?», de Stephen R. Anderson, no livro Questions about Language, organizado por Laurie Bauer e Andreea S. Calude.
2 Talvez todas as espécies julguem o seu sistema de comunicação especial; não temos remédio que não seja fazer o mesmo.
3 Basta pensar que, em português, não precisamos de usar o futuro para falar do futuro. Se eu disser «Amanhã falo com ele.», estou a falar do futuro sem usar o tempo verbal do futuro. Aliás, esse tempo verbal é relativamente raro na oralidade.
4 Ou seja, essa língua primordial imaginada teria uma ordem OVS (objecto, verbo, sujeito). O português é uma língua SVO (sujeito, verbo, objecto).
5 Um livro famoso, embora já um pouco desactualizado, em que esta co-evolução foi descrita é The Symbolic Species: The Co-Evolution of Language and the Brain, de Terrence W. Deacon.
6 Pensemos numa criança que passa os dias entre adultos que falam. Também aprenderá a falar… Se deixarmos a mesma criança sozinha com livro, não aprende a ler sem ajuda. É um esforço diferente: a linguagem é natural ao ser humano. A escrita é uma aprendizagem diferente, um esforço consciente, que aproveita de outra maneira as capacidades linguísticas do ser humano. Havemos de lá chegar.
Texto publicado no blogue Certas Palavras, em 29 de setembro de 2021. Mantém-se a ortografia de 1945, que é a adotada no original.