Hoje em dia é assim. Pergunta-se a alguém «Gostas de bolas-de-berlim?» E ela, em vez de dizer sim, não ou assim-assim, diz «evito».
Não lhe perguntei qual é a frequência com que ela emborca bolas-de-berlim, nem tão-pouco se está a fazer dieta e se as bolas fazem parte da lista proibida. É a essas duas questões inenarráveis que responde o «evito».
Também é irritante porque «evito» tem um eco fraudulento de santidade como um halo de cartolina dourada segurado pelo próprio.
Ao dizer «evito» está a demonstrar que conhece muito bem a tentação que uma bola-de-berlim pode exercer, mas que, mesmo assim, porque preza a saúde e a linha e tem uma vontade de ferro, quase sempre consegue resistir.
De vez em quando capitula – afinal, é humano – mas é muito raro. Daí o rigor do «evito».
Se o meu interlocutor odiar bolas-de-berlim não diz que odeia. Diz «dispenso». Dispensar é das palavras mais ridículas que usamos.
Começamos logo a dizer «dispensei a Matemática» e não quer dizer que já não queremos ter nada a ver com a Matemática.
Mais odioso ainda é usar o «dispenso» na negativa para mostrar que se gosta muito de uma coisa: «Depois do jantar não dispenso uma boa aguardente vínica e um charuto cubano de topo».
O «evito» e o «dispenso» estão tão generalizados que a única maneira de contorná-los é voltar às manias classificativas da infância: «De zero a vinte quanto é que davas às bolas-de-berlim?»
Infelizmente esta abordagem não favorece uma boa e longa conversa sobre pastelaria portuguesa. Evita-a. E dispensa-a.
Crónica de Miguel Esteves Cardoso para o jornal Público, em 22/04/2019. Manteve-se a norma seguida no diário português, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.