Num texto publicado no suplemento Ócio, do Diário de Notícias de 5/09/2018, o jornalista Filipe Gil faz considerações sobre as novas formas de encarar a vida, que parecem estar relacionadas com a atribuição de uma importância diferente aos verbos ter e experienciar e seus respetivos significados.
Ter ou Experienciar?
Desde tenra idade que, todos nós, sonhamos ter. E não são raras as vezes que ouvimos crianças debaterem-se pela posse, mesmo que fantasiada, de um automóvel ou moto desportiva que ao passar chama a atenção de todos.
Fi-lo quando era pequeno e vejo os meus filhos e amigos, meninas também, a discutirem que aquele Ferrari que acabou de passar é de um e o Porsche que se seguiu é do outro.
Na infância são várias, e repetidas, as vezes que as palavras «meu ou minhas» se soltam das bocas pequeninas quando se deparam com certos objetos únicos. Será intrínseca esta vontade humana de ter? Às vezes são sonhos que nos seguem por uma vida e que conseguimos realizar umas décadas mais tarde. Parece que todos nós, desde tenra idade, gostamos de luxo. Mas, como descobrimos uns anos mais tarde, não está ao alcance de todos.
Talvez mesmo por isso – e porque o mundo tem mudado mais vezes nas recentes décadas do que em centenas de anos – a palavra ter está a ser substituída pela experienciar. As novas gerações querem vivenciar, experimentar, sentir. Estão a abandonar a posse em troca de algo desapegado, mas mais marcante.
Quer-se conteúdo, qualidade e história (curiosamente, características que nunca faltaram às marcas de luxo), mas não só. As novas gerações querem sentir-se únicas, querem, como diz o supermodelo português, agora empresário, Armando Cabral, poder «identificar-se com as coisas que lhes tocam». É esse luxo que está a brotar.
Mesmo grandes empresários preferem uma semana a passear pelo Mediterrâneo num confortável barco alugado sem grandes preocupações do que a «chatice» da manutenção que o iate dá.
Nuno Mendes, chef viajante e que depois de percorrer meio mundo encanta agora os londrinos com os seus pratos e simpatia, reafirma o valor da hospitalidade. Lá está, o valor da experiência e do experienciar. O seu novo projeto na zona este de Londres, o restaurante Mãos, é isso mesmo.
Mas a experiência não se fica pelos automóveis ou a gastronomia, mesmo nos típicos produtos de luxo, como, por exemplo, uma peça de cristal feita na fábrica da Vista Alegre ou um relógio de alta relojoaria suíça, as novas gerações querem que tenham um significado, uma história de emoções cravada no objeto.
Os próximos anos irão trazer à baila esse debate: ter ou experienciar? O que vamos afinal querer?
Texto de Filipe Gil com o título "Ter ou experienciar", no suplemento Ócio, do Diário de Notícias de 5 de setembro de 2018.