A propósito da querela do Acordo Ortográfico, apresenta-se um texto que Frederico Lourenço escreveu e divulgou no dia de Carnaval de 2016 (9/02/2016) no mural da sua página do Facebook.
Estava eu ontem a folhear, numa livraria de Coimbra, as novidades editoriais quando, de repente, comecei a rir às gargalhadas. Ainda não parei. É que estive a reparar na quantidade espantosa de livros recentes que, na sua ficha téchnica, afirmam não seguir, “por vontade expressa” do auctor, as normas do mais recente accordo orthográphico com que a língua portuguesa voltou a ser (segundo dizem) desfigurada. Ri-me hystericamente por duas razões.
A primeira é que esta reforma orthográphica será obviamente a última: nunca haverá outra, porque o grau de desobediência civil é tal que nenhum gubernante (sim, a graphia correcta seria essa) se atreverá a alterar de novo por legislação a orthographia do português. Vejamos bem: o resultado práctico desta última reforma foi dar charta branca a cada um de nós para escrevermos como nos apetece (“por vontade expressa do auctor”), sem nenhum constrangimento jurídico. Deixou de haver orthographia official no nosso país.
Por outro lado, a reacção algo hystérica de tantos oppositores da nova orthographia parece-me uma absurdeza digna da comóidia aristophânica (não esquecer que que o “ói” da palavra “comóidia”, analphabeticamente escripto por desconhecedores da sua origem hellénica como “é”, provém de um diphthongo grego de base longa).
Sinceramente, não consigo ver que a actual orthographia seja muito pior do que a anterior. É igualmente analphabeta. A anterior, numa escala de zero a vinte, merecia-me zero valores. Não era nenhum património imaterial nem material nem coisíssima nenhuma. A actual não difere muito da anterior: continua igualmente na fasquia do zero. Ambas são orthographias para um povo sem auto-estima. Mas não vamos por aí: hoje é Carnaval.
Gente! A questão fulcral é esta: a nossa orthographia deixou de ser etymológica há mais de cem annos. A partir desse acontecimento catastróphico, não vejo razão para entramos em hysteria pelo facto de “redacção” ter perdido um “c”, se já aceitávamos uma atrocidade como “tradução” (em vez da forma correcta “traducção”).
Porque é que estas questões de mudança de orthographia tornam as pessoas tão irracionais? O meu pai ficou de luto quando tiraram o accento grave aos advérbios de modo (na escripta dele, lia-se sempre “invariàvelmente”) e eu perguntava-lhe se ele não era capaz de perceber que esse accento era um mero phantasma – mas não. Ele insistia na hypérbole do cataclysmo.
Ora o meu pai era, como se diz em latim (e se voltássemos simplesmente a escrever latim?), um “laudator temporis acti” e, na sua melancholia, chamava à nossa cultura “A Morte de Horácio”, porque, segundo ele, o abysmo chaótico das orthographias posteriores ao collapso da monarchia tinha levado a que batêssemos no fundo mais fundo do troglodytismo. Como Ricardo Reis, ele gostava de escrever “apocalypse”, assim, com graphia bem theatral.
Mas eu cá sou muito menos lyrico e contento-me com o facto de – contràriamente ao italiano – ainda não termos chegado ao grau máximo do analphabetismo, que seria escrevermos “Orácio”. Enquanto Horácio mantiver o seu H, escreverei com qualquer orthographia, velha ou nova. A verdade é esta: “una vale l’altra, perché nessuna vale nulla” (paraphraseando Lorenzo da Ponte). Assinado hoje, em dia de Carnaval, por vontade expressa de mim mesmo, auctor.