«No Brasil, evitam-se as vergonhas assim: o povo usa, não ofende, não fere sensibilidades nem faz mal a ninguém, pelo contrário, facilita a comunicação, enriquece o léxico e diversifica ainda mais a cultura, porque não fazer parte da família vocabular?»
Pergunta Edno Pimentel em crónica que junta algumas reflexões sobre o português do Brasil, em confronto com a relação entre norma e uso no português de Angola. Texto publicado pelo semanário luandense Nova Gazeta em 5/11/2015.
Veio de lá, do outro lado do oceano. Das bandas de Evanildo Cavalcante Bechara – um dos maiores linguistas da terra do samba. Lá há regras, como em qualquer outra parte. E a língua, de facto, é do povo. Eles lá – os brasileiros – admitem isso. Como já me referi neste mesmo espaço, eles assumem a realidade que os rodeia e, por assim dizer, normalizam o que lhes é útil. Isso, acredito, deve ser para evitar pedidos de desculpas enquanto se fala.
Aqui, por exemplo, todo o mundo sabe o que é magoga, mas ninguém diz que a come. Como a palavra ainda não está lexicografada, recorremos a outras palavras, às vezes sem graça: «Comi uma sandes de frango frito», quando, na verdade, o que foi uma deliciosa e irresistível magoga. E para amenizar, ouve-se «a vulgarmente chamada de magoga». No Brasil, evitam-se as vergonhas assim: o povo usa, não ofende, não fere sensibilidades nem faz mal a ninguém, pelo contrário, facilita a comunicação, enriquece o léxico e diversifica ainda mais a cultura, porque não fazer parte da família vocabular? Ai não!? Eles só deletam o que de facto não serve. Não tampam o sol com a peneira* como costumamos tapar aqui. Para os brasileiros, isso é fácil [fáciu]. Para mim, é muito [legau] (legal).
As abelhas no Brasil produzem mel [meu]. Os nossos bebês usam fraldas, mas os do Brasil usam fraldas [fraudas]. Mas não quer dizer que eles estejam a fraudar. Não! É assim que eles pronunciam o l [u], quando este forma um encontro consonantal imperfeito (fral-da: o l e o d formam um encontro consonantal que é imperfeito, por elas, as duas consoantes, não pertencerem à mesma sílaba).
O mesmo acontece quando Alcione está em palco [pauco]. Ela samba e salta [sauta] se for necessário. Não importa se está a ser filmada [fiumada].
Mas nós estamos em Angola. Sofremos, sim, influência dos nossos irmãos. E essa é daquelas coisas às quais raramente conseguimos escapar. Contudo, como ainda não nos normalizamos, devemos obedecer a regras, certo? Sem fraudes com as "fraudas" dos brasileiros, o l na mesma situação não deve ser pronunciado como u. Acabam-se as fraudas, mas não as fraldas.
* N. E. – O autor refere-se a uma confusão que alguns falantes brasileiros fazem entre os radicais de tapar e tampar, criando "tampar". Embora se documente esta forma, trata-se de incorreção mesmo no Brasil.
Cf. "Norma ou desvio do português de Angola" e Angola reaprecia adesão ao Acordo Ortográfico
Crónica da autoria de Edno Pimentel e publicada na coluna Professor Ferrão do jornal luandense Nova Gazeta, em 5/11/2015. Manteve-se a ortografia conforme a norma ainda aplicada em Angola, a qual é anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.