Intervenção – com base nas notas a seguir transcritas – do então diretor de Informação da Lusa sobre o processo de adoção do Acordo Ortográfico na agência de notícias portuguesa, em Vigo, numa iniciativa conjunta da delegação do Instituto Camões na Galiza e da Porto Editora, a 17 de abril de 2010.
[É com agrado que estou aqui para] falar do Acordo Ortográfico, um assunto que tem para mim, não só como pessoa, mas como profissional, um importância determinante.
É uma grande alegria estar na Galiza, uma terra que conheci bem no início dos anos 90, quando trabalhei como jornalista no Porto, e da qual gosto como se fosse minha.
E é também um prazer estar a falar para um grupo de professores e de estudiosos sobre um assunto em que as elites dos dois países tiveram um papel tão determinante e que, no caso das elites portuguesas, cabe à geração atual desfazer as opções estratégicas tomadas pelas elites do século XV, cinco séculos atrás.
Neste ponto gosto sempre de citar Roland Barthes:
«O poder é um parasita de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e não é só à sua história política. Este objecto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é a linguagem».
Pois bem, até aos séculos XIV/XV as elites da Península Ibérica eram bilingues: falavam – sobretudo em regiões como a Galiza – indiferentemente o português e o castelhano, ou espanhol.
E o português e o espanhol eram nessa altura relativamente semelhantes, havendo vastas zonas do território em que ambas as línguas se misturavam, se fundiam.
Os dois países, por seu lado, eram os tecnologicamente mais evoluídos do seu tempo, lançando-se à conquista dos oceanos e à descoberta e à administração dos novos mundos na África, nas Américas, na Ásia e na Oceânia.
Houve tentativas de fusão das duas coroas, que falharam, e consolidou-se nas elites portuguesas um medo – que ainda hoje permanece – de absorção de Portugal por parte de Espanha.
Nessa altura, as elites portuguesas encararam a língua do ponto de vista político – diria mesmo do ponto de vista geopolítico – como elemento diferenciador, como elemento identitário.
E, enquanto o espanhol seguiu o caminho da simplificação e da aproximação à fonética – que ainda hoje se verifica e no qual trabalham as academias de todo o mundo hispânico – os gramáticos portugueses seguiram o caminho inverso:
complexificaram a língua;
transformaram-na no sentido da etimologia latina;
tornaram a língua mais complicada.
Neste esforço participaram então, pelos séculos XVI, XVII e seguintes as elites políticas e as instituições do Estado
Tudo para se afastarem de Espanha e para afirmaram a sua diferença, a sua individualidade.
Hoje, cinco séculos depois, já com uma década cumprida no século XXI, a tarefa das elites portuguesas é exatamente a contrária:
Há necessidades sociais, políticas, geoestratégicas, culturais e, sobretudo, económicas que determinam uma aproximação aos países de oficial portuguesa espalhados por quatro continentes.
Tal como a Espanha, Portugal tem uma necessidade vital de estreitar laços e de potenciar as suas relações com o seu antigo império – perante cujos os países tem vantagens competitivas naturais e importantes.
Se não o fizer, entrará – definitivamente – em decadência
E, portanto, o desafio que se coloca face à língua é hoje:
– simplificar a língua;
– aproximá-la à fonética;
– torná-la comum à forma como é escrita em oito países que perfazem mais de 250 milhões de habitantes.
Devo dizer, em homenagem à verdade, que as elites portuguesas – elites culturais, académicas, políticas, económicas, sociais – não foram nem muito rápidas nem muito expeditas nesta decisão.
Isto apesar do artigo 11, n.º3 da Constituição da República Portuguesa dispor que uma das tarefas permanentes do Estado «é assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa».
Ou seja, Estado português tem o dever jurídico-constitucional de defender, por todos os meios ao seu alcance, o uso internacional da língua portuguesa.
Apesar de isto, as elites e os governos, os partidos, as academias, as universidades, as empresas...
… andaram anos, e anos, e anos, a adiar tomar uma decisão efetiva para terem uma ortografia comum que quebrasse a barreira língua para
os mercados do livro,
a tremenda importância simbólica e política dos grandes fóruns internacionais, como as Nações Unidas,
e para o mercado da comunicação social;
ou seja:
para os mass media – os meios de comunicação de massas, à escala planetária.
Ou seja,
para a Internet
(e a Internet não é uma mera virtualidade, já não é a realidade virtual, é o mundo concreto em que vivemos.)
E é aqui que eu entro.
Os Estados da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, a CPLP, da qual fazem parte Portugual, a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Timor, esse país gigantesco e extraordinário que é o Brasil, e um território – digamos, singular – que é Macau.
Os Estados da CPLP acordaram, finalmente, que o acordo ortográfico obtido pelos linguistas anos atrás, iria entrar em vigor em janeiro de 2010.
Ora, para a agência Lusa – que é uma agência nacional de notícias, o equivalente à agência EFE em Espanha e que, como esta, tem a vocação de tornar comum a informação de todo o seu espaço linguístico (num caso a lusofonia, noutro caso a hispanofonia) para a Lusa, dizia, esta convergência ortográfica apresentou-se como uma magnífica oportunidade de alargar o seu mercado, que são 650 clientes espalhados pelos cinco continentes.
Um potencial – que é a língua – tornada competitiva, transacionável, para mais 240/250 milhões.
A Lusa não é a única agência da Lusofonia, mas é a única com vocação planetária.
Quisemos logo aderir. Estava-se na primavera de 2009.
Marcou-se outubro e novembro para que todos os jornalistas da Lusa – a maioria em presença; e uma minoria espalhada pelo mundo através de sessões transmitidas por Skype – tivessem ações de formação conduzidas pelo ILTEC – Instituto de Linguística Teórica e Computacional.
Ações de formação de 15 alunos cada, oito horas.
Os objetivos eram:
♦ Refletir sobre o acordo, perceber a sua filosofia, a sua lógica;
♦ Saber que num universo de cerca de 250 mil palavras, nós utilizamos basicamente 150-170 mil. E que, destas, só cerca de 2000 é que mudavam (pouco, muito pouco).
Faltava, no entanto, um corretor ortográfico que pudesse ser instalado nos computadores de todos os jornalistas da casa. Uma agência de notícias nacional necessita, como é óbvio, que a sua ortografia seja fiável e que os erros só aconteçam por exceção.
O corretor ortográfico ficou pronto na segunda semana de janeiro de 2010.
E houve uma operação que, do ponto de vista logístico, foi complexa: instalar remotamente o corretor em 300 computadores espalhados pelo mundo.
Tudo isto no meio de grande contestação em Portugal:
– grupos de escritores que clamavam contra o acordo dizendo que a pátria estava ferida (Saramago, que concordava mas não aderia; Vasco Graça Moura, poeta e deputado europeu, militante quase fanático contra o acordo; etc, etc.;
– jornais que declaravam a adesão/ outros que recusavam o Acordo;
– ministros a dizer que, nas escolas, só a partir do ano 2010/2011;
– os manuais seriam publicados com a nova ortografia;
– editoras que diziam uma coisa, outras que diziam outras.
Uma grande confusão, sobretudo neste último janeiro.
No entanto, na Lusa, nunca esteve em causa avançarmos.
Antes do fim da semana da mudança houve ações de formação de três horas para recordar o aprendido em outubro e novembro,
recordar os critérios,
fazer exercícios
E, na noite de 30 para 31 de janeiro de 2010, mudámos
Plim!...
Dirão vocês: e os clientes?
Os vossos 650 clientes?
Devem ter tido grandes reclamações! Redações inteiras habituadas a uma grafia e que, de repente, vêem o mundo de pernas para o ar.
Nada disso. Nem uma reclamação!
Há jornais e as televisões e sítios na Internet que continuam a usar a antiga grafia. Mas, ao lado, coabitam as notícias da Lusa – se são por agora mais de 90% das notícias na Internet em Portugal – na nova ortografia.
Ou seja: neste momento em Portugal já há dois universos que estão completamente entrelaçados, com mais de dez de milhões de pessoas a comunicaram em duas grafias. Em que a nova ganha todos os dias mais utentes e a antiga todos os dias perde.
Tal como papel paradoxal das elites portuguesas nos séculos XV e XXI, também esta história é paradoxal: ainda não acabou – na verdade ainda está a começar – e já tem um final feliz.
Intervenção sobre o processo de adoção do Acordo Ortográfico na agência de notícias portuguesa, em Vigo, numa iniciativa conjunta da delegação do Instituto Camões na Galiza e da Porto Editora, a 17 de abril de 2010.