No português coloquial de Angola, nascer tem o sentido de «dar à luz» – como se ilustra nesta crónica do autor, publicada no semanário Nova Gazeta de 24/12/2013.
No trânsito, na rua ‘cónego Manuel das Neves’, ao São Paulo [em Luanda], naquele ritmo “a conta-gotas” a que os carros se moviam, era possível ouvir conversas inteiras de senhoras que por aí vendem. Histórias engraçadas. Deu até tempo de comprar uma coca-cola a um rapaz que, em conversa com o seu colega zungueiro, disse: «A Mana Rosa estava grávida, mas já nasceu.» E o colega zungueiro: «Já sei. Nasceu ontem, gémeos.»
«Deve constituir um grande presente para os pais receber dois bebés quando só se esperava um», comentou um dos colegas no carro. Já o outro via a coisa de um modo diferente. «Nos nossos tempos, com as dificuldades por que muitas famílias passam, ter ‘um’ já é complicado, imaginem ‘dois’?!» O que me interessou, porém, não foram os pareceres dos meus “penduras”, mas sim a Mana Rosa e os gémeos.
Mas, afinal, quem nasceu? A mãe ou os gémeos? Nascer, nascemos todos. Todos os que vivem e os que já lá se foram nasceram numa data e num determinado local. Ou seja, nascer, para este caso, significa «iniciar a vida de modo autónomo, vir ao mundo». Isto significa que quem já existe não pode nascer de novo. A mulher, quando está grávida, espera «dar à luz» e, assim, nasce o bebé. Não se pode dizer a «Mana Rosa estava grávida, mas já nasceu». Porque, supostamente, a Mana Rosa nasceu no dia 14 de Fevereiro de 1974, em Catete. Mas os gémeos a quem ela deu à luz nasceram a 17 de Julho de 2013. Nascer é um verbo intransitivo, isto é, não pede complemento directo ou indirecto. Para completar a ideia, pode ser seguido da informação do local (complemento circunstancial de lugar), ou do tempo (complemento circunstancial de tempo).
Quando se pergunta «quando é que nasceste?» quer saber-se «quando é que vieste ao mundo». Se se quer saber de uma mulher que esteve grávida sobre a data em que gerou o seu filho, deve dizer-se «quando é que deste à luz?» ou «quando é que tiveste?». Ter pode significar também «dar à luz».
Deste modo, os meus amigos deveriam ter dito correctamente: «A Mana Rosa já teve/deu à luz”; e «já sei. Teve/deu à luz ontem, gémeos.»
[Outros textos de Edno Pimentel sobre o português de Angola]
in semanário Nova Gazeta de Luanda, publicado no dia 26 de dezembro de 2013 na coluna do autor, "Professor Ferrão". Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.