A proximidade entre as palavras é o tema deste texto publicado no semanário angolano Nova Gazeta, na qual o seu autor nos fala do mau uso dos verbos encher e inchar.
«Sim, doutor. Foi ontem à noite que isso aconteceu», explica a mãe já muito aflita depois de o filho de quatro anitos ter sido picado. O pavor devia-se aos mitos à volta daquele animal que, segundo a senhora, já tinha matado uma pessoa muito próxima, daí que o rosto despreocupado e sereno do doutor diante da criança cheia de coceiras preocupava-a ainda mais.
«Doutor, o meu filho vai ficar bem?», insiste. «Vai sim, minha senhora. Diga-me uma coisa. Ele é alérgico?», pergunta o médico. «Não sei, doutor. Nunca vimos nada de estranho em casa. Ele come quase tudo. Nunca apresentou qualquer sinal de alergia, doutor».
Com muita dor e comichão, o menino não parava de coçar o local da picada. A mãe impaciente com as perguntas do médico, de quem esperava um milagre para acabar com a angústia do filho, ajudava-o a esfregar a perna para ver se a dor acalmava.
«Disse que foi um quissonde, é isso, minha senhora?», pergunta o médico. «Não foi formiga, doutor. Foi uma santopeia. Não está a ver como é que o pé dele encheu?».
Em seguida, o médico preparou o remédio, deu algumas recomendações e sugeriu que a família mantivesse a casa sempre limpa e seca. «Esses bichinhos, minha senhora, gostam muito de lugares húmidos. Convém, por isso, ter muito cuidado para que isso não volte a acontecer».
Onde há crianças, e não só, todo o cuidado pode ser pouco. A sorte é que foi um bicho que, de acordo com o doutor, «não constitui grande ameaça para o homem, só em casos de alguma alergia».
Hoje foi apenas uma centopeia que picou e o pé inchou. Mas podia ter sido um animal muito mais venenoso.
De santo, a centopeia não tem nada. O seu nome provém do latim (centumpĕda) e quer dizer «que tem cem pés». Quando este pica, a região do corpo picada não enche, incha. É provável que esta relação semântica (criada por alguns falantes) derive do facto de os dois vocábulos (encher e inchar’) serem parónimos e terem o sentido de «cheio ou volumoso». Encher (do latim implēre) significa «tornar cheio» (que para alguns pode ser de pus ou de outra secreção). Mas inchar significa «fazer aumentar de volume, geralmente por alguma inflamação». E foi este o caso do menino. A centopeia picou-o e o pé inchou.
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 22 de agosto de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.