«O que se requer ao insulto para ser arte é elevação, e a única via que eleva é o apuramento da linguagem. Dizer de certo sujeito que é «alcançadíssimo de inteligência» ou que o caracteriza «extrema parcimónia das faculdades mentais» é melhor do que chamar-lhe idiota: não apenas tem graça como suplanta o sentimento de caridade pelos menos afortunados, facilitando a apreciação da frase em si mesma, sem consideração do efeito que venha a produzir no visado. O desprezo da linguagem é que por seu turno torna o insulto perigoso. Numa história de Guimarães Rosa, um perigoso bandido aposentado procura esclarecer se «famigerado» é «nome de ofensa» alerta o professor catedrático Abel Barros Baptista num texto sobre a arte do uso da linguagem, publicado na revista Ler, Livros & Leitores de novembro de 2012.
Que pena que não se ensine mais literatura nas escolas! E que pena, considerando o meu propósito de agora, que se não se ensinem certos géneros menores, como polémicas, vitupérios e outros produtos textuais em que se agride e destrói, por serem actos de guerra. Concedo que não ilustram as crianças, mas podiam adestrar os mais crescidos na arte do insulto e educá-los na ideia da liberdade que tal arte requer. Refiro-me àqueles combates verbais em que era costumeiro, por exemplo, mencionar a bestialidade do oponente, sem cerimónias tratado de cavalgadura ou alimária, palavras que desapareceram do espaço público (para nossa desgraça, agora que precisamos de nos preparar para a guerra). Compreensivelmente ninguém gosta que lhe chamem burro… Mas convenhamos que é menos grave chamar estúpido a um sujeito do que pedir a quem manda que o despeça ou cale. O estúpido ou suposto estúpido deve poder exprimir-se, já porque é direito de todos, já porque a estupidez alcança com frequência ser divertida.
Notem que não digo que se deve insultar: digo que não devemos dizer que não se deve. Segundo uma ideia muito divulgada – diria mesmo excessivamente divulgada –, ao insulto apenas recorre quem não tem ideias ou argumentos. Não é exacto. O mais lídimo insulto origina-se em quem não vê no interlocutor interesse pelas suas ideias ou o reconhece incapaz de lhe compreender os argumentos. Fora disso, o insulto surge da simples desnecessidade de ideias ou argumentos: contra gente que não merece outra forma de ataque. Insultar é por vezes exigido pela indignação e pela dignidade ou pela satisfação de mandar uns canalhas à tábua, como disse Fernando Assis Pacheco, todas motivo legítimo. E para isso tem de haver liberdade! Camilo já o exigiu em 1874: «Nisto de acolchetar antonomásias, tanto aos reis como aos súbditos, peço e quero que haja liberdade plena. Por exemplo: o redactor da notícia da Actualidade, conhecido entre os seus parceiros por um epíteto qualquer, está sujeito a que a posteridade lho altere ou inverta. Eu, por enquanto, circunscrevo os limites da minha fantasia a chamar-lhe tolo.» (O tal redactor era Silva Pinto, que acusara o romancista de confundir D. João II com D. João III, por atribuir ao segundo o cognome do primeiro; Camilo garantiu tê-lo feito de propósito, explicando que, príncipe perfeito ou piedoso, a patarata é a mesma.)
O que se requer ao insulto para ser arte é elevação, e a única via que eleva é o apuramento da linguagem. Dizer de certo sujeito que é «alcançadíssimo de inteligência» ou que o caracteriza «extrema parcimónia das faculdades mentais» é melhor do que chamar-lhe idiota: não apenas tem graça como suplanta o sentimento de caridade pelos menos afortunados, facilitando a apreciação da frase em si mesma, sem consideração do efeito que venha a produzir no visado. O desprezo da linguagem é que por seu turno torna o insulto perigoso. Numa história de Guimarães Rosa, um perigoso bandido aposentado procura esclarecer se «famigerado» é «nome de ofensa». Consulta então um certo desinfeliz, boticário ou médico, que apesar de apavorado mal reconhece o homicida, e apesar de ele próprio definir o medo como «extrema ignorância em momento agudo», se perde num exercício de lexicografia e minucioso explica que famigerado é inóxio, significa célebre, notório, notável, importante, sem vilta nem doesto, expressão neutra, de outros usos… Mas o celerado insiste: é desaforo, caçoável, de arrenegar, farsância…? Enfim o outro sai-se com isto: «Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria numa hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!...» Eis o que desagravou o inquieto bandido: não o dicionário, mas a crença de que o outro mais depressa desejava a descrição do que se ofenderia com ela.
Aprende-se com o caso que o pior inimigo na arte do insulto acaba por ser a susceptibilidade do ofendido; tantas vezes uma susceptibilidadezinha de almas frágeis, que se ressentem do que quer que saia um pouquinho do hipocorístico… Ai não, Tatá, de si não esperava, de todo, querida, de todo…
In revista Ler, Livros & Leitores de novembro de 2012 (coluna “A ordem dos críticos”).