Começando por transcrever uma crónica publicada no quinzenário português Jornal de Letras, Artes e Ideias ("Um cê a mais", de Manuel Halpern), a poetisa angolana Ana Paula Tavares aborda aqui a nova grafia do português na sua rubrica Nossas Vozes. Crónica emitida na RDP África, no dia 13 de Outubro de 2010.
«Um cê a mais
«Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pés me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes, gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com tempo fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
«Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hífenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em “há de há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em vêem e lêem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março, são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro é ótimo que já não tenham.
«As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção nem me fracione nem quero tropeçar em algum obeto abjeto. Porque verdade seja dita, hoje em dia não se pode ser atual e atuante com um cê a atrapalhar.»
Manuel Halpern, "O homem do Leme", in Jornal de Letras, Artes e Ideias. 6 a 19 de Outubro 2010, p. 43.
Há textos assim. Surgem para resolver as nossas mais profundas dúvidas, questões, problemas estéticos, saudade e um certo desconforto que tudo quanto é novo desperta. O texto parece despido com a falta das consoantes mudas. Mas uma língua é um sistema vivo, aberto e dinâmico e não fechado e estático. A língua portuguesa tem uma história e atualizações e adaptações que a fazem ser hoje muito diferente do que era no tempo de D. Dinis, ou Eça de Queirós. O português falado no Brasil ou nos países africanos cria todos os dias formas de se adaptar a realidades que são diferentes das do português europeu. As normas alteram-se por isso mas a comunicação continua e a abertura para a compreensão das nossas vozes deve ser a norma a ter em conta.
crónica emitida na RDP África de 13 de Outubro de 2010