Em artigo publicado no Diário de Notícias de 7 de Outubro de 2009, assinalando os dez anos do falecimento da fadista portuguesa, o poeta e escritor Vasco Graça Moura escreve sobre «um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado», do «milagre» de Amália Rodrigues.
(…) Em conversa com [o jornalista] Manuel Halpern, do Jornal de Letras, a propósito da poesia de Amália Rodrigues, falei da qualidade da escrita dela, que não tinha tido qualquer espécie de educação formal. Não me ocorreu então que, na sua segunda carta a Vitorino Nemésio, ela assumia a confirmação disso mesmo: «Ai, meu querido professor/Eu nunca fui sua aluna/Não tenho instrução nenhuma,/Como é que posso entender/O que o senhor quis dizer/Sem saber ler nem escrever?» E esse é um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado, do milagre de Amália. Nos seus versos, ela soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.
A chave para entender o fenómeno, na parte em que ele pode ser entendido, creio que está precisamente nessa aliança de gosto apurado, sentido da musicalidade e do ritmo, simplicidade verbal e naturalidade de expressão que Amália soube processar com requintada destreza entre a ingénua frescura da tradição e da poesia do povo (da toada beirã às criações dos letristas populares que cantava) e o trato aturado com a poesia mais elaborada dos escritores que foi incorporando no seu repertório. A influência das oficinas de David Mourão-Ferreira e a de Pedro Homem de Mello nalguns dos seus temas próprios parece-me evidente. Mas as coisas não ficam por aí e há outros aspectos que surpreendem, como, em Flores do Verde Pinho, esta habilíssima utilização de uma forma verbal arcaica: «Ai, flores do verde pinho,/dizei que novas sabedes/da minha alma, cujas sedes/ma perderam no caminho!»
E há momentos de grande eficácia técnica. Recordo os meus dois fados favoritos de que Amália escreveu a letra, Estranha Forma de Vida e Lágrima, o primeiro com a sua intensificação repetitiva pela retoma do primeiro verso de cada quintilha no remate dela, a acentuar a "estranheza" da vida daquele "coração independente", o segundo com a reiteração sincopada da primeira metade de cada verso, como se o próprio avançar do poema fosse depender desse "tactear", desse recomeçar da procura da maneira de dizer para chegar à máxima intensidade lírica, a exprimir a fragilidade com que o ser humano se expõe desamparadamente na paixão. O texto de Lágrima, obra-prima da Amália letrista, poderia ser quase integralmente reduzido a quatro quadras, mas a sua transfiguração dramática deve-se a essa espécie de leixa-pren, de retomar insistente e fracturante do teor de cada verso, reforçando uma dialéctica muito fadista que poderia esquematizar-se cruamente desta maneira: realidade/sonho, sofrimento de amor/disponibilidade para morrer.
Nos poemas não cantados (reporto-me à excelente edição de Versos, organizada em 1997 por Vítor Pavão dos Santos) mantêm-se muitas destas características, a que acresce em geral uma nota de humor e de auto-ironia muito pessoal (por exemplo: «Cá por dentro da cabeça/vazia como eu a tenho/por estranho que pareça/atendendo ao seu tamanho»…). Esse humor surge com frequência nas peças de matriz mais popular e também no pequeno bestiário da autora (gafanhotos, grilo, bicho-de-conta, mosquitos, cabra e vários outros animais aí incidentalmente referidos).
Noutros fados, como Lavava no Rio, Lavava e Quando Se Gosta de Alguém, a repetição é utilizada com excelentes efeitos, no primeiro, a recordar a toada das cantigas de amigo e do romanceiro, no segundo, explorando contradições e perplexidades cujo sentido se reforça exactamente pela engenhosa recondução das questões ao mesmo pressuposto inicial («quando se gosta de alguém»). Já em Amor de Mel, Amor de Fel, a sequência qualificativa e modulada do amor sentido entre os seus pólos de contentamento e amargura joga com anáforas, com oposições, com hipérboles, com alusões à relação tonal de fado maior e fado menor e, por esta via, com a ambiguidade entre o sentido de fado (canção) e o de fado (fatum, destino).
Enfim, o que em Amália vive e sente está pensando e recordando, como ela escreve em Depois Disto… desisto, redondilhas que começam assim: «Tantas coisas que já li/Outras tantas que vivi/Fazem de mim o que sou/Ai, se eu tivesse esquecido/Tudo o que tenho vivido/E o coração decorou.»
Artigo publicado no Diário de Notícias de 7 de Outubro de 2009.