Carlos Fragateiro dedica espaço alargado no jornal Público, de 8 de Maio de 2009, para sublinhar o lugar do português na criação de uma Europa multilingue. Pela consolidação de relações com a Espanha e o espanhol — como uma ponte para a América latina —, bem como com a França e o francês — como uma estratégia de aproximação efectiva aos países africanos.
Nos séculos XV e XVI Portugal foi o pioneiro da globalização. Hoje pode assumir-se como laboratório do futuro.
Nos finais do século XV, inícios de XVI, fomos capazes de revelar à Europa que o homem é feito de muitos homens, muitas raças, contribuindo para o aprofundar da visão renascentista e provocando um abalo que forçará a reconstrução e reconfiguração de todo o saber. Esta capacidade de provocar mudanças e de revelar outros mundos faz parte e existe no nosso ADN, o ADN de um país com uma alma que teve o tamanho do mundo e que tem sido transportado através dos tempos pelo espírito da língua portuguesa. Uma língua que é um lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade, uma língua como a nossa, como disse Vergílio Ferreira, donde se vê o mar e se ouve o seu rumor e que foi a consubstanciação de um novo espírito que se formou na Europa inteira e que hoje nos pode ajudar a ter um olhar especial sobre o estado do mundo, a inventar um outro sentido do mundo. Uma língua que é hoje a nossa maior riqueza, o instrumento privilegiado e estratégico na afirmação de Portugal no contexto europeu e na afirmação da Europa no contexto mundial.
Em 2008 comemoraram-se duas efemérides ligadas à vida de dois portugueses, os padres Tomás Pereira e António Vieira, verdadeiros cidadãos do mundo que ligaram pessoas e culturas e foram exemplos únicos do modo de ser português. Tomás Pereira, que viveu na China e foi astrónomo e músico, de quem se comemoraram, entre Lisboa e Pequim, os 300 anos do seu nascimento, e António Vieira, o pioneiro da globalização e da multiculturalidade, cujas comemorações dos 400 anos do seu nascimento continuam, a pedido do Brasil, até meados de 2009. Estes dois homens são exemplos paradigmáticos de como as teias, criadas a partir das relações centradas na cultura e no conhecimento, perduram ao longo dos séculos e que têm sido pouco ou nada potenciadas pelos diferentes poderes.
Transportando a nossa língua toda esta carga simbólica e este sentido de mudança, e sendo a terceira língua europeia mais falada no mundo, é naturalmente um instrumento privilegiado na assunção, por parte de Portugal, de um papel activo e de liderança na construção de uma Europa das Línguas e das Culturas, na construção de uma identidade europeia capaz de se afirmar no contexto mundial, num processo que deve potenciar quatro dimensões.
Uma primeira, que coloca no centro os projectos que acolham no seu seio a diversidade cultural e linguística europeia, onde a nova Europa se possa experimentar nos processos de criação, privilegiando duas alianças estratégicas: com a Espanha, não só no contexto do espaço ibérico, mas acima de tudo no quadro da realidade ibero-americana, pois não podemos esquecer que os falantes de Português e de Castelhano representam um universo de 650 milhões em todo o mundo; com a França no contexto do universo africano, pois há muitas semelhanças e interesses comuns entre os projectos da lusofonia e da francofonia.
Uma segunda, que crie condições para que esses criadores e essas estruturas contactem com projectos e práticas de referência, tanto ao nível do Brasil, como da África lusófona, tornando perceptível a sua importância estratégica para a construção de uma Europa que, sendo hoje um mosaico de todas estas realidades, tem uma efectiva dificuldade de as integrar devido ao pouco conhecimento que tem desta realidade multicultural e mestiça.
Em terceiro lugar há que ter em conta a diáspora portuguesa, que permite encontrar em todo o mundo gente que pensa também em português e que podem ser verdadeiros embaixadores de Portugal no mundo, não só projectando o nosso país no contexto internacional, mas também alimentando a nossa compreensão do mundo multicultural e mestiço em que vivemos.
Finalmente, Portugal pode ser um país privilegiado no diálogo com os países emergentes, nomeadamente a China, a Índia e, por maioria de razão, o Brasil, tendo em conta todo o passado histórico e as redes de cumplicidades que se foram reforçando ao longo do tempo e que é urgente não deixar apagar.
Se nos séculos XV e XVI Portugal foi a primeira aldeia global, foi o pioneiro da globalização, hoje pode assumir-se como o laboratório do futuro, como um país que é um efectivo laboratório de diálogo e contaminação de culturas, um espaço de encontros, de troca e de criação de cumplicidades. Portugal pode reassumir um papel estratégico na Europa e no mundo, já não como potência e império, mas como plataforma para a emergência de uma outra cultura, a cultura do conhecimento. Um laboratório onde se simulariam os cenários para o futuro ou os futuros possíveis, criando, como reflecte muito bem este diálogo imaginário entre Picasso e Einstein de uma peça de Steve Martin já apresentada no Teatro da Trindade, uma nova forma de ver o mundo:
Picasso – «Quer dizer que pega numa ideia bela e transforma-a no que ela vai ser na realidade?»
Einstein – «Precisamente. Criamos um sistema e verificamos se os factos encaixam nele.»
Picasso – «Portanto, não está só a descrever o mundo como ele é?»
Einstein – «Não. Estamos a criar uma nova forma de ver o mundo.»
Picasso – «Está-me a dizer que sonha o impossível e ele acontece?»
Einstein - «Exactamente.»
Picasso – «Irmão!»
Einstein - «Irmão!» (abraçam-se.)
in Público, 8 de Maio de 2009