Sobre a ambiguidade do possessivo na 3.ª pessoa, um texto de Miguel Esteves Cardoso, no Público (rubrica Ainda ontem) de 23 de Março de 2009.
Ver a língua a mudar excita e inspira, mas também entristece e confunde. Eu cá odeio a hegemonia do pronome «seu». Camilo já fulminou um adversário com uma sabatina acerca das diferenças entre a família dos «seus» e a dos «deles». É uma guerra mais do que perdida, mas, tal como o luxo de ter uma ortografia nacional (seja-se cabo-verdiano ou até português), é bom falar dela de vez em quando, para que se saiba o que se perdeu.
(...) no Público [de 22/03/2009], o meu amigo e herói (e provedor) Joaquim Vieira (J. V.) escreveu, com correcção: «Quando os bloguistas violam esses direitos, o problema é seu...» A minha reacção pedante é responder logo: "Meu? Porque há-de ser meu e não deles, dos bloguistas?"
E se J. V. quer mesmo dizer que o problema é meu, como cidadão português ou leitor? E se depois quer acrescentar que, além de meu, o problema também é deles, dos bloguistas? Como faz?
Como é que digo, a alguém que trato por você, que vi a mãe dela vestida dos pés à cabeça com a sua (da mulher que conheço) roupa, a passear a cadela dela (mãe). Digo: «Ontem vi a sua mãe no Chiado. Lá ia ela, toda airosa, com o seu tailleur da Chanel; com a sua malinha Kelly; com a sua trela da Gucci, a passear a sua cadelinha...»
Ela aí pergunta: «Com o meu tailleur da Chanel ou com o seu? É importante eu saber!» Como posso esclarecê-la só com a porcaria do «seu»? «Com o meu não foi. E com o dela também não. Ela estava toda apertada. Foi com o seu!»
É picuinhas, mas aqui fica a eulogia pronominal.
in Público, 23 de Março de 2009